segunda-feira, 22 de junho de 2020

Horas mortas

Imagen, Hombre, Sol, Puesta de sol, Naturaleza, Noche, silencio ...

Vejam, não me entendam mal, eu gosto de vida, mas prefiro as horas mortas. Até porque é injustíssimo o nome que lhes dão: não são nada mortas, estão apenas desabitadas de gente, porém plenas de morcegos, grilos, passarinhos. Nas horas mortas há o silêncio das vozes e das inquietudes, das discussões, das televisões, dos churrascos, dos telefones, dos interfones, dos abre-fechas de elevador, das campainhas, dos porteiros, dos carrinhos de compras, dos ajeitamentos de móvel, das percussões do vizinho, das trilhas sonoras impostas pelo vizinho. Existe-se mais devagar nas horas mortas, pisa-se mais leve, não se vão despertar as angústias gerais que dormem; os homens, as mulheres já cessaram ou ainda não reengataram de viver em voz alta, não recomeçaram o celular aos brados na janela ou a videochamada aos brados no apartamento de baixo (por que o foro íntimo precisa ser tão coletivo, Senhor?), não reiniciaram as broncas e os jogos com as crianças, que também não retomaram as birras, os gritos, os choros, as correrias. As notícias bombásticas apenas engatinham no dia, ou já cansaram; quase que não aconteceram, de tão sonolentas a este ponto ou por enquanto. Ah, o silêncio, o silêncio. O silêncio do oxigênio fresquinho, o silêncio que é oxigênio refrescante, raro, bom. A possibilidade brevíssima do silêncio.

Vejam, não se assombrem, eu amo as cores vivas, mas não resisto à penumbra das horas mortas. Os instantes em que o sol é macio, quase destropical, e veste de carícia amarelada os detalhes dos prédios sem doer no olho. Os tons carinhosos à vista com que o céu se crepuscula. O azul de muito cedo ou muito tarde, limpo de tudo, recém-espremido ou recém-evaporado. A delicadeza sem estridência, a beleza sem agressividade, nada das tintas irritantes e suadas do meio-dia, nada do reflexo excessivo na calçada branca; veludo, somente veludo, somente primavera e outono. Matizes também têm seus silêncios, seus sopros, também caem de temperatura fora de horários comerciais – como os ventos. Todos os sentidos são abordados com menos audácia nessas dobras do dia; e ao mesmo tempo, poupados da violência dos estímulos (poupados da fumaça, da buzina, do microfone das lojas, da fúria de vendedores e termômetros), conseguem perceber mais, estão aptos para as essências úmidas da terra, para os mais minuciosos vertebrados e invertebrados que ciciam barulhinhos. Momentos de baixo apelo externo são a inteligência do corpo.

Vejam, não me mal interpretem, eu quero que as pessoas vivam – mas não consigo reclamar de que as ruas se tenham enchido de horas mortas. É com culpa que me animo a rejeitar a normalidade, e no entanto, sem o desejar, rejeito-a; confesso gostar da introversão do mundo, da espécie de mudez pujante que se espraiou por avenidas obrigadas a parar, do vibrar de unidade da multidão oculta, embalada individualmente. Gosto do planeta hibernado, desperto mas recolhido, mais pensante, mais filosófico – como eu secretamente gostava, em criança, dos apagões que nos uniam, nos reestruturavam a realidade e nos forçavam a descontinuar o que estivéssemos fazendo de rotineiro. Gosto do planeta à luz de velas, confrontado consigo mesmo, trabalhando a criatividade e retrabalhando suas lógicas; não sinto orgulho de preferi-lo assim, porém sei que não há nisso pulsão de morte e sim, ao contrário, de sossego rebrotante. (Não, eu não passei os últimos meses em Netuno e sei bem que muitas atividades dependem do não isolamento, do não silêncio; daí mesmo me vem a culpa – embora eu não possa ter a pretensão de que meu gosto pela quarentena afete ou deixe de afetar os protocolos de segurança. Como lidar com os remorsos de minha preferência e adaptação involuntárias? Tentando ser útil a alguéns.)

Vejam, não me mal entendam, eu gosto de gente; somente sou incapaz de evitar me sentir confortável em sua ausência.

Nenhum comentário: