terça-feira, 23 de junho de 2020

Clube de vapor humano

Futuroscope Fachada Espelhos - Foto gratuita no Pixabay

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset falou lindo, lindo da poesia ao declarar que "o que distingue um grande poeta é o fato de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós". É frase de captura fotográfica, que encaixa na arte poética (e em outras várias artes, por extensão – senão em todas) feito pecinha de tétris. Que é afinal a poesia, além de um formato específico de nuvem? Sentimentos que evaporam muito similares de todos os peitos reúnem-se, enfim, nesse clube de vapor humano que é o poema, nessa coisa real mas ainda intangível, porque muda diante dos olhos até em sua obviedade. 

A boa poesia sempre nos assusta docemente: é, ao mesmo tempo, o espanto da linguagem inaugural e o susto do reconhecimento ancestral. Como ousa o autor reestruturar tão individualmente o que é de todos, e como ousa escancarar para todos o que é tão nosso? Ler versos (para nós) inéditos é o primeiro contato com um idioma em que nascemos esquisitamente fluentes; em poesia somos constantes bebês aptos para qualquer língua, que nenhuma sabem e sabem todas, porque nenhuma estranham. Cada texto poético é um ovo que Colombo sustenta em pé de mil formas, e engaja o leitor a olhar, a olhar com a sutil irritação de que poderia ter pensado naquilo e de que nunca teria arrancado a ideia de seu limbo com a mesma força. Ali estamos como num espelho doido (e doído) de parque: somos nós na essência, mas é um reflexo de nós só especificamente possível naquela superfície polida por mão de poeta.

Todos temos infâncias, e no entanto nossas infâncias relembradas mudam quando mudamos de Manuel Bandeira para Manoel de Barros, de Cecília para Casimiro, de Vinícius para Drummond. Todos temos amores, e ainda assim nossos mesmos amores vividos são revividos diferentemente em Hilda Hilst ou em Castro Alves, em Adélia Prado ou em Ferreira Gullar, em Florbela Espanca ou em Luís de Camões. Todos temos filosofias, e as que de manhã nos parecem absolutamente reconhecíveis em Ricardo Reis parecerão, à tarde, mais similares a nós em Conceição Evaristo, podendo à noite tender decisivamente para Mario Quintana. Quais deles somos nós? todos: se é experiente o poeta na confecção de eus líricos, hão de borbotar daquela fábrica tipos humanos que já vestimos, e a eles iremos por serem sempre do nosso número – mesmo que, pela novidade do talhe, uma ou outra manga não encaixe perfeitamente. O autor não nos adivinha; o autor se expande. Ao se ler, lê o código genético da mesma fonte que nos origina, e lê cada qual a seu modo: com sua voz, com sua cadência, com seu sotaque, com sua fonética, aprofundando os trechos que mais o encantam ou mais lhe doem. Ouvimos e entendemos, rememoramos a seiva da mesma árvore, reagimos à madeleine coletiva da experiência humana. "Humano sou", resumiria o poeta Terêncio, "nada do que é humano me é estranho". 

Estranho será – estranhos seremos – se não reencontrarmos alguma parte em parte alguma. Compreender, curtir, frequentar, ler, repetir poesia é opcional; mas não ser atingido por ela em nenhuma brecha de reconhecimento já é problema de DNAlma.

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