terça-feira, 30 de junho de 2020

Não ser tudo

Meditación, Pensamientos, Cima, montaña, solo un hombre, solo ...

O querido Bernardo Soares – heterônimo mais genial e desassossegado de Fernando Pessoa, que eu acolheria no colo ou apertariiiiia no coração com a maior das ternuras – exprimiu em um de seus desabafos: "Deus é o existirmos e isto não ser tudo". Que justeza! Não sei (nunca soube) como é para os que não creem, já que nasci e me criei crendo; mas, se assim não fosse, eu era bem capaz de abrir a porta a crer após esse único ressoar de Soares, por mais desconsoladas e tristes que sejam suas centenas de divagações – ou talvez por isso mesmo. O próprio desassossego de Bernardo (de Fernando, por extensão) é tão incabível, tão avassalador para uma só natureza humana que se mostra exemplo do quanto o humano transborda, não se contém nas esperadas margens, não se basta nem se aquieta no visível. O humano é imenso, hábil e aflito a ponto de ser impossível que termine; o que há nele se derrama, se espraia; e não por gerações de outros homens apenas, que estas acabam num simples estalar de sol. Existe em nós, necessariamente, algo que nos supera.

Alguns citarão a arte como veículo de permanência, porém a arte é consequência, não causa; a arte é um dos jeitos mais extraordinários de darmos forma ao buliçoso que levamos no peito, mas não é em si mesma a razão do bichinho buliçoso. E também não é fator de perenidade que se manifeste em 100% dos sapiens, nem todos são adeptos dessa maneira de botar humanidade pelo ladrão – o que injustissimamente excluiria do "não ser tudo" boa parte do planeta. A ciência? A ciência vem de nossas constatações justamente a respeito do palpável, sensível, audível; é, portanto, a parte do "existirmos", não a de "não ser tudo". O amor? Parece; até porque, em seu favor, ele é de acesso e uso universal, ou ao menos suas manifestações e legislações o são; não depende de uma vocação específica como a arte (ou outro qualquer talento), não está preso ao físico como a ciência e tem transcendência suficiente para permanecer além de nós. Mas exatamente: por que o tem? a que se assemelha? de onde vem?

Se somos capazes de amar nos mais amplíssimos formatos – amar mesmo, e não jogarmos contra o amor manchando sua reputação –, é por existirmos e isto não ser tudo; afinal, não há bastante lógica de autopreservação embutida no amor (em grande parte dos casos, até pelo contrário, uma vez que vive mais interessado na preservação alheia até à custa da própria); ele paira sobre o duro e o quantificável da existência e, inclusive, opõe-se essencialmente aos interesses comerciais, por mais que estes procurem apreendê-lo e domesticá-lo. Todas as versões de amor que podemos conter sobrevivem teimosamente à matéria que nos reduz, ao cotidiano que nos previsibiliza, ao profissional que nos tornamos, ao animal que somos, ao ente de sociedade que aprendemos a ser. É chama que nos cutuca para provar diariamente que o mundo não responde nem basta; que, só por estarmos, não significa que pertencemos, porque nenhuma rotina sozinha nos move e nos justifica. Há mais, há mais. Há uma emanação que nos é exclusiva, ou que temos a exclusividade de refletir e verbalizar. Pensarmos que não somos só isto sugere que não somos só isto. Agirmos não sendo só isto prova-o cabalmente.

Somos imagem e semelhança do que não explicamos, mas que nos explica.

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