domingo, 21 de junho de 2020

Pequena odisseia ano adentro

Ficheiro:VathiGrece.JPG – Wikipédia, a enciclopédia livre

Volta e meia passa um meme de Facebook declarando que "não vou incluir o ano de 2020 na minha idade. Eu nem usei!". A gente lê, sorri e aperta a reaçãozinha do haha, mas a coisa é tristíssima. E nem falo das tristezas evidentes que vieram na caixa do corona, postada na agência do inferno pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: falo da pressuposição dolorosa de que um ano tão extremo possa ter sido não usado, não vivido. Como assim, nem usei?? Seria limitar pobrissimamente a experiência humana às saídas para o trabalho, shopping, balada; seria considerar que somos utilizáveis e produtivos apenas na rotina – fingindo ignorar, aliás, que to-do-san-to-a-no chegamos a dezembro com o ar espantado de quem estava no desfile da Mangueira ainda ontem e não teve tempo de fazer bulhufas. Se só a exterioridade e o hábito carimbassem os anos como mission accomplished, estaríamos constantemente plenos e saltitantes ao fim de cada ciclo, e não (admitamos) chocados com o escoar das horas em fluxo de cachoeira, frustrados com os projetos irrealizados ou feitos aos trambolhões, agoniados pelo virar da folhinha e o zerar das promessas incumpridas. Porque atingir nova idade não vem de viver para fora, vem de ser redesenhado do mundo para dentro.

Em 2020 já: fomos apresentados à realidade da pandemia, imergimos num primeiro marco histórico, readaptamos os expedientes, baixamos aplicativos de videoconferência, aprendemos a usar aplicativos de videoconferência, corremos loucamente para implementar tentativas de educação à distância, sofremos desventuras e chiliques com as tentativas de educação à distância, fizemos reuniões online com crianças promovendo UFC em segundo plano, ganhamos máscaras diversas como acessórios de vida ou morte, viramos craques em modelos de máscaras, conhecemos o face shield, assumimos que o álcool gel is the new água, demos banho em saco de batata frita, demos chance ao livro encostado, demos valor a empregos e relações estáveis, adotamos hobbies, adotamos catioríneos, desenvolvemos novos conceitos de festas aniversárias, pascais, formandas, casamenteiras e juninas (Deus permita que as natalinas escapem do bonde), frequentamos cultos religiosos pela TV e internet, mudamos a forma de dar presentes, mudamos a forma de estar presentes, reconceituamos as saudades, descobrimos vizinhos, batemos palma na janela, batemos panela com a alma, assistimos a lives, organizamos lives, suamos a camisa to stay alive.

Também: constatamos que permanecer vivo ainda é privilégio de cor, explodimos em manifestações contra o racismo estrutural, fomos varridos por ondas várias de racismo estrutural, ardemos em debate e indignação, vimos os Estados Unidos marcharem, vimos o mundo marchar, vimos profissionais negros assumindo mais espaços nos jornais, imergimos num segundo marco histórico, ficamos transtornados e perplexos com o navio fantasma que erra à deriva na capital brasileira, odiamos o ódio, odiamos mais, odiamos mais um pouco, presenciamos o acender de tochas fascistas, presenciamos o apagar de ministros-cometa, acompanhamos a queda de meteoros sobre a família-em-chefe, observamos com pipoca o desenrolar de baixarias, maratonamos discussões épicas em canais de notícias, aguardamos cenas dos próximos capítulos. Contemplamos, aprendemos, ressignificamos, reprogramamos e alteramos uma tonelada, e isso apenas até junho; como então não vivemos? Mesmo para a turma da quarentena mais aguerrida (na qual me incluo), como supor que não sair impede o ano e as experiências de entrarem, invadirem, não raramente nos atropelarem, transformando-nos em filhos legítimos deste tempo, em Ulisses de alguma odisseia particular – provavelmente a de Joyce, já que o mundo não nos tem deixado viver Homero?

Sim, usamos 2020 largamente, ainda que em espaços mais estreitos e com elásticos mais apertados. Em diferentes escalas, diferentes obstáculos e dramas, tecemos versões alternativas de nós que espero nunca venhamos a destecer penelopemente; nada teremos vivido, de fato, se retornarmos incólumes ao "normal" e esquecermos que o velho "normal" (como relembra outro meme de pontaria mais feliz) era exatamente o problema. Que as rotações de nosso eixo tenham valido; que a jornada íntima e a pública nos tenham ensinado; que aportemos melhores em nós – nós individuais e coletivos – como resumem fabulosamente os versos de Konstantínos Kaváfis, na tradução de Ísis Borges da Fonseca: "Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou./ Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,/ já deves ter compreendido o que significam as Ítacas".

Nenhum comentário: