segunda-feira, 8 de junho de 2020

A luz difusa

Foto profissional gratuita de apresentação, audiência, balada

Tenho uma ruma de motivos para ficar de pé atrás ou nem gostar de Ciro Gomes, mas a capacidade do cabra de soltar tiradas fantásticas não entra nesses motivos. Recentemente, num daqueles debates da Globonews entre políticos de espectros diferentes, dei uma gargalhada das robustas ao ouvi-lo referir-se a Sergio Moro como uma espécie de cortesã CHO-CA-DA de se dar conta da própria atividade: "[...] dezesseis meses depois, ele, que estava ali [...] na luz difusa do abajur lilás, no samba [...], descobre que estava cercado de prostituta". Embora com seu tanto de machismo ancestral, a comparação saiu tão inesperada e inusitada que precisei explodir em riso. É isto: andam por aí, aos bandos, essas supostas almas cintilantes de Penélope Charmosa que fazem uma cena shakespeariana ao serem confrontadas com a sujeira que não viam e não podiam deixar de estar vendo. Almas que passeiam com o traje dominical de "cidadão de bem" e ignoram sorridentemente os respingos de lama no forro.

É evidente que não me refiro a crianças e adolescentes que crescem embebidos em admiração por pais, avós, tios e não têm nenhuma tarimba para etiquetar o mal, quase nenhum conhecimento das misérias humanas ou muito pouca maturidade para metabolizá-las; refiro-me apenas a adultos vacinados e minimamente instruídos, ao menos em termos de ética. Sabem aquele indivíduo que vai a toooooodos os churrascos mais íntimos do pilar da sociedade morador da vizinhança, já ouviu 55 mil vezes suas brincadeirinhas de tiozão dirigidas a (ou relativas a) mocinhas que ainda mal menstruam, mas mesmo assim abre uma boca DESTE TAMANHO quando é revelada a atividade mais escrota do vizinho na deep web? Sabem aquela amiga que perdeu a conta dos comentários e reviradas de olhos racistas da outra, já riu amarelo e mudou de assunto eight days a week e, apesar disso, fica BESTA quando a serumaninha viraliza na internet dando piti contra uma pessoa negra no shopping? Sabem aqueles parças que já presenciaram uns arranca-rabos seríssimos entre um casal amigo, já olharam desconfortáveis pro lado durante uma segurada forte de braço, já até atiçaram por zoação uns perigosos ciúmes, mas DE JEITO NENHUM acreditam quando seu companheirão é preso por feminicídio? Então. É quase certo que haverá o momento do autoengano, do autopano passado: gente do céu, eu nunca imaginaria isso, era um cara tão bacana, quem poderia ter previsto? Quem? quem? quem? Raimundo Nonato? Não, filhote: você mesmo. Vocezão. Quão difusa estava a luz, para que transbordamentos tão óbvios de machismo, fascismo, racismo, pedofilia, violência, possessividade, descontrole pudessem simplesmente não chamar a atenção em seu cantinho? Qual o diâmetro do holofote de estádio necessário para ver o horror que lhe dá bom-dia ou compartilha o elevador?

Não posso não me lembrar do Adolf Eichmann descrito por Hannah Arendt – um elemento condenado, quinze anos após a Segunda Guerra, por crimes de genocídio contra judeus. De acordo com Arendt, Eichmann não tinha histórico antissemita, não era psicologicamente monstruoso, não era perverso por natureza, era somente um sujeito que alegava "cumprir ordens" e que desejava subir na carreira, transportando pessoas para a morte sem questionamentos. Não era o Grande Mal que aparece em desenhos animados; era meramente um homem comum e "lógico", que enxergava vantagens ao não ir contra o sistema e mesmo nem atinava que deveria fazê-lo, tomado de "vazio do pensamento" e indiferença. A partir da análise desse infeliz, Hannah fala sobre a banalidade do mal, conceito que deveria nos acordar com um soco no fígado todos os dias; trata-se do mal que brota não de aberrações psiquiátricas ou ações espaventosas, mas de um acatamento "do que está aí", de um "é assim mesmo, o que se pode fazer?", de uma ausência de reflexão filosófica sobre consequências, escolhas, verdadeiras responsabilidades. O mal banal vê a tempestade crescer e politicamente se entrega à onda, abraça-a, colabora com ela. Vira pro lado para não ser testemunha, não vê nada de mais numas sonegadinhas, acha que feminista está exagerando, acha que os negros estão exagerando, assina o que for para não arriscar o emprego (a grana, o casamento, a reputação), não fala, não protesta, não reage, segue o fluxo. Pode não ser a motosserra que estraçalha, porém é o fungo que se alastra e deixa tudo quebradiço, oco, vulnerável; também mata, também destrói. Não se efetivam as grandes crueldades sem, no mínimo, o patrocínio surdo do mal banal.

Não se cria um Adolf Hitler sem a conivência medrosa de cada Adolf Eichmann que vive em (ou entre) nós.

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