quarta-feira, 10 de junho de 2020

Revisitâncias

Imagem gratuita: boneca, lembrança, de madeira, artesanato ...

As brincadeirinhas de Facebook não são novas, mas ganharam impulso durante a quarentena: entediadas ou precisadas de um desestresse, de uma mudança de foco, pessoas embarcam em desafios como postar dez cartazes de filmes que lhes foram essenciais, sete capas de livros que mudaram sua vida, vinte canções que resumem sua biografia e outrices semelhantes. Normalmente, só um item da lista é postado por dia; no post algum amigo é marcado para continuar o jogo, o amigo marca outras tantas criaturas, que marcam outras tantas criaturas – e vai a coisa crescendo em PG, num esquema de pirâmide do bem. Claro, muita gente faz a egípcia quando o coleguinha lhe passa o bastão, no que está absolutamente em seu direito: ninguém é obrigado a deixar tempo e vontade a serviço dos caprichos de seus contatos. Eu, de meu cantinho, vejo essas dinâmicas com simpatia, e confesso gostar de ser marcada; cria um pequeno compromisso de nós para conosco, não de ter um dever de casa (esses não faltam), mas de nos fazermos casa de memórias a ser revisitada amorosamente. 

As listas a que sou convocada com mais frequência são as de livros – às vezes gerais, às vezes específicos, como agora os de poesia. Não me faço de rogada, topo sempre, porém não vejo graça em repetir itens ainda que o desafio seja o mesmo; em consequência, mergulho e remergulho no já lido, no já amado, no crucial, no mais fundamental entre os fundamentais, e peso, e comparo, e abro o armário para checar as prateleiras, e consulto anotações de anos recentes. Admito: em nome de alguma variedade de autores, acabo não sendo exatamente leal à escala das importâncias (vá lá, fica chato cravar George Sand em sete posições entre dez); mas mentir, não minto. Todos os integrantes de qualquer lista são escrupulosamente queridos, embora me incomode sentir que minhas leituras de formação, as autênticas, já estejam rareadas, pelo motivo simplíssimo de a formação em si já andar em fase de manutenção. Talvez as relações – nos vários sentidos do termo – tenham perdido os apaixonamentos de primeira hora, os frescores de quem descobre preferências, de quem inaugura de cores a tela, de quem se estreia. Provavelmente. Afinal, as obras conhecidas agora não abordam olhos novatos de quatorze anos, mas de quarenta; é consideravelmente mais difícil chocá-los ou redirigi-los, sabem o que querem, a maioria dos dardos está lançada. Em compensação, parece mais satisfatório descobrir, hoje, uma pérola com maior potencial de abalo – talvez tão poderoso quanto conhecer um pedacinho terrestre capaz de superar nossas projeções infantis do paraíso. 

Engraçadamente, com os filmes a lógica (pelo menos no meu caso) é bem outra: não me surpreende que a qualquer momento, em qualquer sessão, uma produção possa entrar para minha lista de clássicos sem grandes burocracias. Não sei se porque o contato com filmes envolve imagem, trilha e uma absurdidade de coisas para além do texto, apelando para respostas mais imediatas de nossa medula; não sei se porque o cinema normalmente só dispõe de umas duas horas para capturar amores que se desenrolam, com os livros, por dias e dias; não sei se porque as tecnologias da telona vão ficando mais e mais impressionantes, atacando partes de nós que os recursos analógicos do papel não podem tocar – seja pelo que for, enfim (e me parece mais provável que seja por tudo isso junto e mais dois ou três milhões de motivos), o fato é que literatura é amor interminável de juventude, cinema é amor avassalador ou racional de maturidade. Que maravilha não precisar escolher entre ambos, que maravilha ser convidada a fazer listas em que necessariamente me questiono e me redefino por meio de ambos. A pessoa que sou (somos) é uma coleção de mudanças provocadas e atravessadas por narrativas.

Nesta era de plot twists em que a humanidade ressignifica suas construções, supercombina que recebamos um empurrãozinho diário para apertar o refresh de nossas páginas e renovar o preenchimento de nossas lacunas.

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