sexta-feira, 12 de junho de 2020

Longe

livre arte de balão de coração fotos | Piqsels

"O que amamos está sempre longe de nós", diz minha adorada Cecília Meireles num primeiro verso de poema, aguda, precisa, com o típico jeito ceciliano de flechar no peito as coisas mais abstratas. (Cecília, por sinal, é um ser amado que estará eternamente longe no tempo, e que tenho de me resignar a abraçar só em alma – como normalmente são os corações que nos falam fundo sem nos serem contemporâneos.) Sim, admitamos: amamos à distância, ainda que não falemos aqui de enamoramentos platônicos, de loucuras fanáticas, de paixões, e sim de amor mesminho, aquele que Cazuza chamava sabiamente de sorte e em que punha sabor de fruta mordida. Todo o amor que houver nesta vida, por mais deitado na rede, por mais almofadado e confortável, há de ser necessariamente amor por algo que nunca se alcançará – e há de ser mais palpável e terno quanto mais souber que não alcança.

O que amamos tem vida própria. Ter vida própria é se individualizar na existência, a despeito de todos os desesperos românticos de compor uma alma xifópaga. Não há nenhuma possibilidade de eliminarmos todas as fronteiras, de expormos 24 horas corridas de pensamento, como um BBB emocional; e é lindo que não haja. É vital. Se é pedregoso o caminho para amarmos a nós mesmos, nós que acessamos todas as nossas miudezas e os menores detalhes poucos dignos de orgulho, quais as chances de aceitarmos somar nossas zonas já penumbrentas com as que vêm em outras histórias e outros pacotes, se tudo pudéssemos ver com clareza crua? Claro, não podemos amar o perfeitamente desconhecido; porém está implícito, no contrato inescrito do amor, que o outro será um parcialmente desconhecido eterno, e ainda assim aceito com braços esperançosos. (Desnecessário dizer, mas digo: estamos excluindo psicopatias e bonitezas semelhantes, que aqui ninguém quer dar depoimento para os Lobo em pele de cordeiro ou os Vivendo com o inimigo que passam no Investigação Discovery.) O acordo é amar com motivos para convicção, receber com alguns mínimos pré-requisitos para a entrega, mas SEMPRE sabendo que não há totais garantias quando se lida com material humano, que ocorrerão surpresinhas – e tudo bem. Ou se fará o possível para que fique tudo bem. Sem possessividades, sem neuroses, sem textões no Reclame Aqui só porque a criatura tem uma areazinha 51 indisponível. Todos temos. Se não guardamos ali nenhum (neeeeenhuuuuum) artefato com potencial de nuclearizar a relação, é só nossa a posse das chaves – inclusive para decidirmos quais chaves, divididas, ficariam mais leves. 

Amar é o salto de fé indispensável, amar não exige senhas, não vasculha celulares, não revira bolsos. Amar tem mais o que fazer. Ainda que não tivesse, jamais violaria os espaços de independência, uma vez que é safo o suficiente para fazer uma continha simples: ou a confiança existe e a invasão é inútil e absurda, ou a confiança não existe, a invasão é igualmente inútil – e absurda é a própria relação. O amado, a amada de verdade está sempre longe, sempre inacessível a quaisquer tentativas nossas de enjaular suas nuances, e tão mais inacessível se tornará quanto mais forçarmos a porta; quanto mais assaltamos o castelo, mais alta e mais acorrentada a torre dos segredos. "Amor" desses para quê? Para quem? Com que objetivo e com que alegria? Não bota nenhuma luz no coração obter a borboleta na base da rede para depois destruir-lhe o voo, matá-la na essência cravando-a numa superfície de dissecação. Quem a ama, se a quer (e lhe quer) realmente como borboleta, ama-a devagarinho, como diria Quintana; ama-a sabendo que ela só voará e terá a íntegra do próprio encanto enquanto pertencer a si mesma. Ama-a contemplando-a em suas distâncias e se fazendo disponível como campo de pouso, um pouso voluntário e leve que a borboleta só cede àquilo que é capaz de saciá-la em seu apetite de flor.

Amar só acontece na delicadeza com as lonjuras (maiores ou menores) dos destinatários. Nada injustifica mais um amor do que pesar sobre aquele a quem deveria servir de catapulta.

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