sábado, 20 de junho de 2020

Vidas possíveis

Paisagem Janela Pedras - Foto gratuita no Pixabay

Não acredito em vidas passadas; não mesmo. Entendo aquelas lembranças randômicas, de um tempo que não poderíamos ter frequentado, em parte como memórias geneticamente recebidas e em parte como reelaborações de nosso próprio cérebro – que, convenhamos, é um aparelhinho de mistérios e peraltices. Uma jornada só, por cima da crosta terrestre, já dá trabalheira que chegue e nos assinala como únicos, intransferíveis. Mas isso tange a crença de cada um e não vem bem ao caso. O ponto é que acreditar numa única existência não me impede de imaginar o que poderia ter sido se essa existência tivesse calhado em outros séculos e realidades; o que, com base naquilo que me sei, sou levada a pensar que eu seria.

Se eu tivesse nascido em (sei lá) 1841. Supondo que surgisse no mundo como sinhazinha de fazenda, suspeito, com 99,7% de provas e convicções, que viraria a rebelde da família – mas na miúda, na encolha, pra render mais. Não era eu besta de bater muito de frente para me deitarem logo os cabrestos, o que não teria nenhuma serventia; ia fazer a sorridente na sala, toda acima das desconfianças de que ali houvesse uma alma de potro brabo, e surdinamente alfabetizaria os escravos e lhes daria fuga, sempre de maneiras várias e criativas. Seria sonsinha o bastante para ninguém descobrir nunca que aquele anjo do patriarcado era uma abolicionista ardilosa, uma feminista de nascença, divertindo-se horrores em agir e escrever bem debaixo dos bigodes senhoriais – em fazer panfletos e desfazer articulações; vazar gente, joias e informações para o quilombo. Caso finalmente viessem a olhar cabreiros para a donzela tão bem-comportada (porque quase toda burrice tem limite), lá fugiria eu, lindona, para me casar com meu poeta romântico não previsto pela família – de preferência o Casimiro, se topasse o abolicionismo e a noiva, nessa ordem. Se não topasse, meninos literários ardentes, frágeis, carentes e republicanos não haveriam de faltar naqueles outroras. 

Também me ocorre que eu poderia ter caído como alemã já moça nos anos 40, mas do século seguinte, e a narrativa para mim é sempre a mesma: me vejo tendo um prazer inenarrável conspirando com o máximo de arte, escondendo centenas de judeus nas próprias fuças dos nazistas, providenciando identidades e passaportes, "contrabandeando" órfãos para lares confiáveis, fazendo os vermes arianos de (mais) idiotas com o maior cinismo e desfaçatez que o Criador pôs no mundo. Ou então eu seria uma infiltrada assim semelhante na ditadura militar brasileira, uma insuspeita que amaria ser um porto seguro, mocozando perseguidos no meu próprio quarto, necessário fosse. Sairia vestidinha de normalista para transportar mensagens guerrilheiras e, entre conversas inocentes e familiares com os tios milicos, descobriria um tantão de dados a serem devidamente encaminhados para minha querida resistência. Em suma, vê-se que pilhei um coração de Cavalo de Troia, um furor de explodir o sistema odioso bem pertinhamente do núcleo, um gozo de ir minando o terror como o cupim agindo nas bases – no silêncio, na malandragem, na come-quietice, escoando feito água que não se segura nos dedos, deslizando pelas sombras, pelas frestas. Uma coisa meio Andy Dufresne em Um sonho de liberdade, filme obrigatório de 1994 que é meu espírito animal.

Quem sempre supôs em mim um sorriso amigo das regras (acontece muito quando não somos os rebeldes levados, e sim os intangíveis), look again. Não vou ser a mosca que pousou escandalosa na sua sopa, mas posso perfeitamente ser a que escuta horrores na parede sem dar nenhuma pinta.

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