sexta-feira, 26 de junho de 2020

Uma tiara antes do pôr do sol

garden, garden fence, wood fence, paling, roll fence, crown, metal crown, deco, ornament, royal crown, pointed

Muitos acharam alucicrazy a decisão do casal Harry e Meghan de abandonar a maquinaria da família real inglesa, mas ó: eu, pessoalmente, superentendo. No caso da atriz, imagino que devam ter pesado na escolha, sobretudo, os preconceitos escorregadios ou explícitos que sua origem angariou naquele universo – incluindo-se no universo o circo e o cerco da mídia, talvez de maneira central; se o pouquíssimo que sabemos sobre o caso nos revolta, pode-se conceber o quão duramente a duquesa foi ferida. Porém, ainda que não houvesse esse ponto de dor, eu já não compreenderia a possibilidade de se morar naquela lógica estapafúrdia, formada de regras sufocantes, doidas. As mulheres da ilustre família não podem usar chapéu após as 18h, não podem usar tiara antes do pôr do sol (a não ser em seu casamento), não podem cruzar as pernas, não podem se casar sem ter no buquê as flores de murta daquele pé plantado pela rainha Vitória em 1845; integrantes da família em geral não fecham as próprias portas, não manifestam opiniões políticas, não mostram carinho em público, não comem frutos do mar fora do palácio, só viajam se levarem uma roupa preta de luto na bagagem – e, se forem os cinco primeiros herdeiros na fila do trono, nada de viajarem todos no mesmo avião. OK, essas e outras semelhantes amofinações são very rich people problems, concordo; não comparo nem compararia nunca com sofrimentos do mundo real. Sem chance. Mas devo admitir que jamais encararia essa bagaça de etiqueta toda, pelo que tem não só de (insuportavelmente) tedioso como também de simbólico.

Não demonstrar carinho em público? Peraí. É bem verdade, claro, que nenhum membro da corte inglesa se arriscaria a ser morto se o fizesse, como milhares de casais homoafetivos pelo mundo se arriscam todos os dias; não discuto que uma bronca da rainha não tem nivelamento possível com agressões homofóbicas; ainda assim, não se anula o reconhecimento da alguma espécie de bestialidade sempre contida na contenção, na vigilância dos gestos mais humanos, mais d'alma. E já que falamos em casais homoafetivos: que acontece se um herdeiro da coroa se descobre gay? É abraçado ou é amassado pelos protocolos?

Não expressar opiniões políticas – outra paulada emocional. Expressar-se é da ordem do sagrado; não bastasse ter de engaiolar suas inclinações físicas, suas espontâneas ternuras, o povo da realeza enjaula os transbordamentos morais, precisa medir os verbos tanto quanto os suspiros, os atos falhinhos de aprovação ou nojo, os revirares d'olhos que tão facilmente liberamos. Definitivamente é regra que não me serve, e em meia semana eu estaria defenestrada de Buckingham por me recusar a olhar algumas caras e apertar algumas mãos. Além de não se pensar nem amar com muito som ou luz, tem as bobagens significativas, toleráveis num dia e asfixiantes numa vida completa: não cruzar as pernas?? Please. Desde os idos da infância, não sossego com elas um minuto – cruzo, descruzo, recruzo, ponho sobre o sofá ou a cadeira, na abençoada busca humana pelo conforto. Ter marcação no relógio para chapéu e tiara? Faça-me o favor, é justamente após as 18h que o frio aperta, e se eu quiser usar uma boina fofinha e fornida? Tolices mil, mas tolices em que a gente não pensa exatamente por nos serem lícitas, por não termos regulamentos no cangote filmando a maioria dos gestos. Como embaixadora universal das "me deixa" people, como representante sindical dos sem-WhatsApp por motivos de estou ocupada lendo, como advogada das que não têm nem maquiagem, nem salto alto, nem pequenos herdeiros nem saco de dar satisfações, sinto o horror desfilando em carro aberto pela espinha ao mero pensamento dessa big-brotherização de cada vontade, look, piscada, pisada, vacilo, espirro.

Nenhuma vida longa a essa rotina sem boletos, mas cheia de códigos e barras.

Nenhum comentário: