quinta-feira, 4 de junho de 2020

Não é o destino

Foto profissional gratuita de alvo, meta

Não, não é o destino de todo mundo. 

Não é o destino de todo mundo sugar agoniadamente um oceano de ar para só vir um filete; não é o destino de todo mundo ter o corpo violentado por um tubo que lhe é estranho e agressivo a ponto de só uma sedação profunda nos salvar daquilo que nos salva. Não é o destino de pais, mães, filhos, maridos, esposas não poderem passar calor à mão amada, numa hora de confusão e solidão abissais, nem irem se despedindo ao vivo dos olhos amados, da voz amada, da história amada, em vez de numa videoconferência mórbida. Não é o destino de ninguém. Pode infelizmente, desgraçadamente acontecer – mas não é o destino. Não quando a doença não vem de geração espontânea ou sorteio do universo, e sim de políticas públicas inexistentes, irresponsáveis, covardes, de uma indiferença nojenta, de um capitalismo genocida que curiosamente não costuma apontar sua roleta para os maiores lucradores. É um crime, não um meteoro. É tragédia anunciada – não azar. 

Não é o destino de todo mundo velar um parente querido que sucumbiu ao joelho ou à metralhadora da polícia. Miseravelmente, odientamente, horrorosamente acontece – mas não é o destino. Nem balas nem bombas nem cassetetes nem joelhos são aleatórios, são perdidos, quando são sempre as mesmas vítimas recorrentemente encontradas. Não é fruto de ooops, não é susto, não é momento, não é reação de oficiais apavorados, não é fatalidade, não é automação de guerra; não é resultado de uma batalha dos Vingadores que varre quarteirões e faz efeitos colaterais randômicos. Não. É projeto de extermínio de uma determinada pele, de uma determinada classe social; é escolha pensadinha do ódio; é a ponta de uma longa linha do tempo repleta de chicotes, capitães do mato e jagunços; é consequência bem direta, bem nítida de péssimas remunerações e péssimos treinamentos; é herança voluntária e cuidadosamente transmitida de geração em geração, de caveirão em caveirão. É política de Estado, não um acidente. É homicídio doloso com nome, endereço, telefone e CPF do destinatário – não pescaria de festa junina. 

Não é o destino de todo mundo perder o último refúgio de uma casinha. Não é o destino de todo mundo precisar apelar a grupos de internet porque seu auxílio emergencial está em análise desde a proclamação da República. Não é o destino de todo mundo sequer conseguir pedir o auxílio porque o país até hoje não sabe de seu nascimento. Não é o destino de todo mundo acalmar a fome dos filhos com farinha e água, ou disfarçá-la com gelo e açúcar. Não é o destino de todo mundo morrer de doenças que nem sabíamos que ainda existiam. Não é o destino de todo mundo ver suas terras griladas, aviltadas e destruídas, quando o seu sangue é o mais legitimamente aparentado com o vermelho original do pau-brasil. Não é – NUNCA é – destino de todo mundo nem de ninguém. É desvio de verba, é crueldade estratégica, é desfiscalização proposital, é enrolação burocrática para mimar empresário, é incompetência crônica, é competência total em ser seletivamente incompetente, é cumplicidade criminosa, é perseguição às lideranças sociais, é engorda dos bancos a todo e qualquer preço, é fome e seca para pesquisas científicas, é favorecimento das milícias, é envenenamento sistemático dos ignorantes com fake news na veia, é demonização dos professores, é depreciação da cultura, é contratação de vermes capazes de vermificar tudo que tocam (um bando de Midas do Planeta Bizarro), é negligência com relação às crianças, é assassinato financeiro dos velhos, é desproteção às mulheres, é letargia institucional, é torpor inoculado por WhatsApp. Em nenhum momento, em nenhuma instância é destino; a culpa não é das Moiras nem das estrelas. A culpa é dos que decidem (inclusive decidem não decidir), dos que podem interferir mas não gritam, dos que enxergam mas viram para o lado, dos que engendram a trama ou não tentam desfazê-la, dos que manipulam os títeres ou voluntariamente se deixam manipular. O "destino" também é doloso, também tem nome, endereço, telefone e CPF. E, em geral, CNPJ.

Não existe destino onde os dados mostram as mesmas faces desde os primórdios do jogo.

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