sexta-feira, 5 de junho de 2020

Papai mudou o mundo

Papai mudou o mundo”, diz filha de George Floyd | Tribuna Online

Essa foi a frase dita por Gianna Floyd, a filhinha de seis anos de George Floyd, enquanto admirava encantada a força das manifestações detonadas após a morte de seu pai. Que a cena seja profética, eterna, um Mar Vermelho de nosso tempo: GiGi erguida nos ombros pelo amigo de George – o ex-jogador da NBA Stephen Jackson –, sorrindo mesmo nos olhinhos já machucados de saudade, inocentemente segura na esperança do que vem, quase pedestalizada como uma escultura da fé pelo boné de Stephen (ilustrado com um FAITH que é como o título da obra-prima). A imagem a ser impressa nas capas dos próximos capítulos; a imagem que há de alvissarar o resto do ano, da década, das gentes. Uma criança, (futura) mulher e negra – compilação de minorias historicamente desamparadas – confiante no caminho, inteiramente convicta da mudança, sem dúvidas de que o percurso melhorará apesar do peso já tão grande da bagagem. O resumo de um planeta ferido e resoluto (embora não resolvido) que se inaugura. 

Sim, seu papai mudou o mundo, Gianna. Ele e todos os antepassados que nele viviam; todos os que, esmagados pelo país que construíram, golpearam-no com as próprias cicatrizes. Todos os que, mesmo na queda, abriram estradas, viraram vozes ambulantes, transformaram-se em nossos gritos. O apelo de Floyd e de outros antes dele – "Não consigo respirar" – vem de todas as gerações e minorias longamente estranguladas por vários joelhos, até explodir! na maravilhosa reação que vemos espalhar-se nas avenidas da Terra. Como disse Jesus, caso algumas gargantas se calem, as pedras gritarão – porque o clamor é transbordante, a necessidade do desabafo é coletiva, a indignação é perpétua, mas também contagiosa: é muito, muito importante que uma determinada voz faísque todo o conjunto de TNTs. Todos somos a pólvora que aguarda, inflamável, pronta, ansiosa, porém carecemos do estopim que nos arda, e o protesto de Floyd finalmente nos ardeu. Finalmente o mundo se incendiou e até as antigas pedras gritaram, moveram-se, insuflaram-se nos pés e nos olhos, atingiram seu ponto de ação e ebulição: muitas caminharam (caminham e caminharão ainda), muitas se ajoelharam (da única forma correta) perante as evidências, muitas se colaram ao chão para que ninguém nunca, nunca, nunca possa esquecer. Tudo porque um homem sintetizou a imagem dolorosa daqueles que pedem pelo que deveria ser o mais natural e acessível a todos. 

Sim, Gianna, seu pai mudou o mundo. Seu pai resumiu e representou, diante de bilhões, cada vítima de um sufocamento no planeta: pessoas pretas cujas pretensões de sobrevivência, educação, carreira são diariamente pisoteadas por olhares de racismo e descaso; pessoas LGBTQI+ que tão pouco alento conseguem em ambientes de trabalho enfumaçados de homofobia e em famílias de amor rarefeito; mulheres constantemente massacradas sob relações abusivas (profissionais, sociais, sentimentais), expedientes eternos, maternidades solitárias, gaslighting, mansplaining, padrões irrealizáveis, medos irrespiráveis de feminicídio e estupro; crianças, idosos, pobres inatendidos em suas fragilidades, em suas solidões e necessidades específicas, e entregues às mais variadas carências e orfandades. George Floyd pedia por si e sua súplica se entornava por todos os "pequenos do Reino", todos os asfixiados do sistema o ouviram em sua própria língua, como um Pentecostes (olha ele aí de novo) de consciência universal da dor. Da maneira como está arquitetada, a humanidade simplesmente não consegue respirar, e PRECISA admitir o fato de que não é "destino", não é asma congênita, e sim uma rapinagem estrutural de oxigênio. O ar não é pouco e é gratuito – mesmo assim, roubado. Roubado pelos fracos que pretendem destacar-se por W.O., que correm a estrangular no berço tudo que é alheio, a fim de reinar sujamente dotados apenas das próprias insignificâncias. 

George Floyd mudou o mundo sendo fagulha. Sejamos, como dinamites, incansáveis no para sempre.

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