sábado, 6 de junho de 2020

Quinhentos anos

Banco de imagens : corda, velho, aço, padronizar, Comida, metal ...

Quinhentos anos em duas frases, comentou João Ximenes Braga no Facebook a respeito da declaração da mãe de Miguel Otávio: "Ela confiava os filhos dela a mim e à minha mãe. No momento em que confiei meu filho a ela, infelizmente ela não teve paciência para cuidar". 

Quinhentos anos.

Quinhentos (e vinte) anos de uma história desgraçada que, fingindo-se surda às forças de evolução e resistência, ainda faz o possível para nos dividir entre sinhás e mucamas pela narrativa da casa grande. Cinco séculos – a maioria dos quais em regime de escravidão oficial, o que não justificará nada nunca, mas explica muita coisa. Após meros 132 aninhos de uma abolição de papel, ainda chafurdamos no ranço dessa lógica imperial maldita que se agarrou em nós feito cica no dente. Old habits die hard, porém crianças negras vitimadas por eles morrem fácil. Muito fácil. 

São cinquenta décadas de naturalização do que há de mais grotesco: a coisificação de humanos. Humanos não são mais (em tese) comprados e vendidos em nossas terras, não são mais escolhidos pelos dentes e músculos, mas o tratamento constitucional de humanos como humanos não impede que olhares brancos permaneçam confundindo humanos específicos com as sombras. Pessoas que nhanhãs e nhonhôs se habituaram a não ver, a não distinguir de seus móveis, a não identificar senão como partes da casa que se mexiam a seu serviço, mudas, discretas, ajoelhadas no chão ou encostadas na penumbra, autômatos sem subjetividade adquiridos para limpar, cozinhar, pajear, segurar bandejas e copos, conduzir recados e fornecer prazer. Nhanhãs e nhonhôs ainda não os diferenciam das sombras; são cinquenta décadas enxergando só as peles claras para a consideração e a reverência, só as peles escuras para a desconfiança e a chibata. Ainda está total e nojentamente entranhada em nossa realidade execrável, perversa, odiosa a possibilidade de colocar uma criança negra de cinco anos, sozinha, num elevador DE SERVIÇO, como um armário ou um caixote que se despacha – um troço que incomoda na sala e se manda a esmo para ser recolhido por outrem. Uma coisa que não pode chorar, porque coisas não choram. Quem chora são crianças brancas, classificadas como não-coisas pelas especificações do radar brasileiro.

São quase 190 mil dias de surrealismo histórico, de abominação, de barbárie resumidos em: funcionários (pretos) são funcionários (pretos), e não intelectualidades dotadas de afetos e escolhas; pobres (pretos) não têm o luxo do não – e ainda assim são julgados em tribunais virtuais pelo sim compulsório; mães (pretas) são passíveis de serem consoladas pela perda mais cruel que se possa imaginar apenas com um magnânimo estender de mão branca: "Você sabe que eu te amo", "Você é praticamente da família". Não, prestadoras e prestadores de serviço não são prática nem ligeiramente da família (a não ser que se leia a frase dentro da lógica nacional escravagista: "Você pertence à família e está presa a ela"). Prestadoras e prestadores de serviço, conforme bem lembra a filósofa Djamila Ribeiro, não recebem a mesma herança de familiares dos patrões, no caso da morte destes. Funcionárias e funcionários mil têm ido trabalhar durante a pandemia em lares curiosamente incapazes de passar sem eles – incapazes de cuidar dos próprios filhos, assear as próprias privadas, comprar ou fazer as próprias refeições, passear os próprios cachorros –, e enfrentam horas de condução lotada, e se contaminam, e contaminam consequentemente suas famílias reais. Quantos patrões você conhece que tratam irmãos, pais, filhos e demais elementos da família da mesma forma que tratam os que são praticamente da família? Então. Né. 

Quinhentos anos. Em duas frases; em duas fases: ser a classe que em tudo depende da mão de obra negra e ser incompetente demais para tornar-se mão (e mãe) ela própria. 132 anos depois da assinatura, homicídios na casa grande ainda são relativizados e vidas pretas ainda estão sujeitas a pagamento.

Nenhum comentário: