domingo, 14 de junho de 2020

Fado

Imagem gratuita: pessoas, retrato, menina, rosa, fumaça, rosto ...

Ontem foram os 132 anos de uma fabulosidade, de um milagre chamado Fernando Pessoa. Nunca se saberá como num corpo tão aparentemente franzino couberam tantas alternativas, biografias e vozes; por que haverá almas que se desconectam e se alheiam, enquanto outras são essas piscinas olímpicas metidas num dedal? Não se compreende como pôde haver Fernando, o que o tornou esse funil de personalidades, esse radar de subjetividades, esse captador de indivíduos, esse alguém impossivelmente feito de alguéns e que – não bastasse ser a máquina de downloadear pessoas – ainda mais impossivelmente era gênio por todas as faces. Fernando era um Roletrando ambulante em que qualquer giro apontava para uma joia da coroa. 

É ingratíssimo colher três ou quatro versos no meio de suas imensidões, mas seja; hoje me agarro a uma estrofe do poema (convenientemente apelidado) "O amor": "Mas quem sente muito, cala;/ Quem quer dizer quanto sente/ Fica sem alma nem fala,/ Fica só, inteiramente!". Chega a ser uma delícia absurda que um ente composto de quarenta e oito mil almas tenha falado em ficar sem nenhuma, e mencionado solidão; porém, no universo do fingidor pessoano, faz TOTAL sentido. Tanto "O amor" quanto a famosa "Autopsicografia" são filhos de qual lógica? A de que o sentir raiz, autêntico, absoluto, colhido com balde na fonte, é na verdade incompatível com as palavras e nelas incolocável – a não ser que passe por um qualquer processo de reconstrução. Para o bem e para o mal, verbalizar necessariamente nos reelabora, necessariamente nos obriga ao polimento da pedra bruta, a qual não conseguiremos jamais, jamais! apresentar em sua forma original. É de fato, portanto, uma solidão eterna, já que se torna impossível nos desnudarmos fielmente com a palavra ou sem ela. Sem ela, o sentir não é visível, não está materializado; com ela, muito do sentir se esvazia no esforço da razão para compor o texto. Daí que não hão de sentir nunca as dores que temos, mas só as que a gente não tem. 

Qual a solução? A beleza é que não há. Se nossa condição solitária é fado (para combinar com o clima lusitano), cabe a nós nos divertir com a missão maluca de equilibrar o que somos e o que dizemos, seguir com a tarefa insana de nos fazermos entender sem fugir muito à origem, sem nos exagerar ou nos baratear. Falharemos miseravelmente centenas de vezes, permaneceremos insatisfeitos com a capacidade do outro de apreender bem um determinado ponto nosso e ser cego e surdo para tantos outros fundamentais, daremos mil suspiros de "mundo cruel" – porém também continuaremos desenvolvendo meios e modos de trabalhar a palavra, manufaturá-la, artesaná-la, vigiá-la contra os mais recorrentes mal-entendidos, ensiná-la a ser molinha e maleável, flexível e múltipla. No afã de nos tornarmos compreensíveis e amados, melhoramos; retocamos o vocabulário em atenção ao mundo, descobrimos brechas de sutileza nas entonações, aprendemos a conter em sílabas um transbordamento que, se fosse liberto em sua potência, sairia varrendo vidas como um Vesúvio. Que felicidade termos de usar a palavra como intermediária! É filtro que realmente nos represa, mas na mesma medida nos apura; embora eternamente sozinhos com nossos oceanos emocionais que não passam no filtro verbal, ganhamos a chance de conviver mais tempo com o que guardamos de único, e de ir treinando o emprego da voz e da escrita como conta-gotas – o que nos salva de devastar, com nossos rompantes de verdade e desejo, tudo que pretendemos conquistar.

Sendo pessoais e intransferíveis, estamos condenados a fingir, na condição ou não de poetas. Resta a nosso pequeno coração primata virar o vizinho mais próximo do que deveras sente.

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