quinta-feira, 25 de junho de 2020

Oceano primordial

Antártida Gelo Mar - Foto gratuita no Pixabay

Sei que ando muito espaço-siderálica, mas quem há de me culpar, se a Terra não tem lá incentivado muito nosso... patriotismo? planetotismo? Enfim. Pode ser também aquela coisa junina, "olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo" feelings. O caso é que não consegui olhar para as notícias do céu e não achar linda a informação de que Plutão, contrariando sua fama de frieza eterna, pode ter nascido ardente, incandescente, e estar escondendo sob a crosta gelada um oceano que se formou graças a essa forte temperatura derretedora – seu oceano primordial, algo que aumenta as chances de sustentar vida. Que ideia, que nome bonito demais: oceano primordial. Ainda que congelado, ainda que subterrâneo.

Bem assim costumamos ser, nós, miniplutõezinhos; em grande parte temos uma infância muito marcante, muito intensa, muito viva – psicologicamente, quero dizer. Não é necessário que tenhamos crescido com oito irmãos, trinta e quatro primos, seis doguinhos, dezoito gatos, uma onça e três capivaras; não é necessário que tenha rolado fazenda, carnaval, viagem, circo, acampamento, fantasma; não é necessário que tenha havido nada furiosamente maravilhoso ou estranho, mágico ou terrível do lado de fora, porque qualquer infância (se merece a designação) é de natureza vulcânica às vezes invisível aos olhos, mas sempre combustível por dentro. Uma criança é um ser em brasa, em labaredas de estímulos e aprendizagens e descobertas e choques e leituras e aromas e informações e pavores e sabores, trinta horas por dia – como o misterioso expediente dos caixas eletrônicos –, talvez porque sonhos e fantasias e devaneios fazem hora extra na construção cerebral. Constituir tooooodos os dados sobre um mundo louquíssimo no qual se recém-entrou é trabalho que põe cabeças infantis em queima ininterrupta, e é da combustão interna desses primeiros anos que nasce nosso oceano primordial, capaz de sustentar bases de nossa vida por todos os seguintes. Somos o que somos hoje porque ardemos, ontem, no processo de construir uma essência. 

Evidentemente continuamos, dia após dia (até o último dia), pintando e repintando nossas paredes, retocando a decoração, atualizando nossas hidráulicas e circuitos, mudando pisos, bibelôs e azulejos; porém as estruturas já estavam feitas, os alicerces já estavam colocados, e esse arcabouço inicial só muda INTEIRO se nos demolirem, se nos destruírem completamente. Alteram-se gostos, paladares, manias, crenças, preferências – mas, acredito, dentro de uma margem que já estava prevista e possível no oceano subterrâneo. A timidez continua morando, embora retrabalhada, no ator de sucesso; as histórias lidas e esquecidas continuam alive and well dentro das várias opiniões e empatias que desenvolvemos; a fé amorosamente incutida pelo exemplo sobrevive nos olhos científicos, respeitosos e reverentes; a incapacidade de machucar animaizinhos persiste mesmo naquele que hoje não consideraria ter um em casa, assim como uma velha tendência à crueldade com os bichitos virá à tona em alguma escrotidão do cidadão modelo; a coragem do desbravador que foi uma criança medrosa já residia, em verdade, na própria introversão dessa criança que observava sem ousar, mas que fantasiava com avidez o mundo – e um dia deslanchou. Passamos, sim, por metamorfoses, porém restritos a um só DNA, a uma só substância a ser constantemente ressignificada; não damos luz a nenhuma asa cuja célula não tínhamos, não mostramos nenhum absurdo de caráter cujo sinal já não dávamos, não nos tornamos nada cujo embrião não incubávamos de alguma forma. 

Vá que não é bonito, mas o fato é que somos chocadeiras ambulantes de ovos de beija-flores e serpentes; dureza é só darmos ou recebermos condição para a eclosão dos últimos. Quanta perda, quanto desperdício humano – nosso e alheio – porque não há olhos bastantemente treinados para descongelar o melhor dos oceanos primordiais! Que nisso está a vida maior dos corpos celestes e terrestres: alastrar na superfície a história subterrânea mais apta a povoar-nos com proveitos de evolução.

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