sexta-feira, 19 de junho de 2020

O mundo não se satisfaz

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O mundo não se satisfaz – nunca. 

Individualmente haverá sempre as subjetividades que nos compreendem, ainda que não nos apreendam, e é para os braços dessas que corremos em fuga da loucura e do colapso total. Mas o mundo, em sua generalidade caprichosa, não se satisfaz. O mundo nos deseja mães, se não o somos; deseja-nos mães outra vez, se o somos já; deseja-nos menos mães, se já o fomos repetidamente. O mundo exige que usemos maquiagem e sejamos naturais, que riamos e não riamos demais, que revivamos medos e os deixemos para trás. O mundo espera que trabalhemos muito, muito, muito, porém não excessivamente, uma vez que é preciso maratonar todas as séries in e alimentar todas as redes sociais e responder em dois minutos a todas as mensagens e buscar novos conceitos para a decoração da casa e brincar com os filhos montessorianamente toda noite e acompanhar participativos suas videoaulas sobre os pronomes pessoais oblíquos e organizar a festinha de níver dos pets. E o mundo cobra as leituras: como assim, você não frequenta Saramago? Kafka? Tolstói? Galeano? Hemingway? Neruda? Poe? Capote? Nietzsche? Só lê Paulo Coelho? Lastimável. Nunca leu Paulo Coelho?? Imperdoável. Por onde você andava desde 1537?

O mundo chateia com aparelhagens e aplicativos, smartphones e atualizações: é crucial necessitar, embora não possamos nos viciar em apelos consumistas, embora os comerciais nos cantem sereiamente duas toneladas de promoções imperdíveis, embora saibamos que a luz azul dos celulares e notes não nos deixam dormir, embora dormir para quê? se tem gente que está trabalhando muito, muito, muito? (trabalhando inclusive para adquirir aparelhagens, aplicativos, smartphones etc.). O mundo aguarda vigilantemente que nos tornemos maaaaagros enquanto comemos pelo menos duas castanhas, uma maçã, banana, abacate, ovo, atum, espinafre, chocolate, chia, lichia, quinoa, pitaia, atemoia, tudo regado a café e vinho tinto para acompanhar as receitas da Ana Maria Braga, todos os dias. O mundo recomenda que sejamos bastante incisivos, porém não, nunca se sabe quem está espiando as redes, e que participemos de todas as manifestações, porém de jeito nenhum, não é o momento. O mundo nos olha horrorizados se não temos mestrado ao menos (não tenho), se ao menos não o queremos (não quero), se não sonhamos uma vida acadêmica (não sonho), para em seguida emendar o olhar horrorizado com "é isso, minha filha, aquilo lá não é mole não". O mundo nos prefere tão casados, noivos e pegadores quanto solteiríssimos, alheios e independentes, e nos estimula a assumir a homossexualidade para sermos felizes, desde que não sejamos felizes em público e continuemos hétero. 

O mundo é um doido, um monstro de mil vozes, um Cérbero de milhões de cabeças, um Inspetor Bugiganga de opiniões, uma entidade que nos agride no atacado e afaga no varejo, uma força que nos pariu emocionalmente e não admite a paternidade, um Esquadrão Suicida que invade a gente para resolver os problemas criados por ele mesmo. Seja quem for ou no que se manifeste, entretanto, o mundo não se satisfaz – nunca. Vai daí que, se pretendemos alguma sanidade, é totalmente insalubre abstratizar como Grande Oráculo um planeta que não consegue concordar sequer em ser redondo. Significa que não há caminho? Ao contrário, ou quase: significa que há caminhos, que cada um de nós é um pocket mundo com suas próprias necessidades e atmosferas (em torno de mim, por exemplo, não orbitam filhos nem WhatsApps), mas que integramos redondinhamente o mesmo sistema e giramos ao redor de determinadas estrelas comunitárias – os fatos, as ciências, os direitos, as justiças, os antipreconceitos. Afora essas estrelas comunitárias que não deixarão de nos sustentar e unir (embora alguns planetas desarvorados as neguem), não tenhamos a ilusão de uma órbita comum; a estrada que me serve lindamente faria um astro a meu lado explodir de desespero, e a dele talvez me fizesse desejar meteoros. Fundamental é não colidirmos, é dançarmos em harmonia coletiva nossas concretudes individuais, combinando que as únicas rotas proibidas são as ameaças a todos ou a alguém. 

O mundo não se satisfaz? que pena, se for um coleguinha de galáxia incomodado com o formato de nosso percurso; força aí, guerreiro. Já nos cabem suficientemente as pressões, tempestades, mudanças, eras, evoluções, gelos, degelos e gravidades de nossa própria translação.

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