domingo, 7 de junho de 2020

Evasão

His Majesty humminbird | A sua majestade o beija-flor!!! | Flickr

Disse a filósofa francesa Simone Weil que "a alegria é a nossa evasão do tempo", e como estou aniversária vou me dar essa verdade de presente (embora preferisse recebê-la de futuro). Não sei bem se a pensadora se referia ao tempo como arquitetura geral, e quis expressar como nos momentos verdadeiramente alegres os minutos têm outra pegada, ou se falava do tempo como época na qual vivemos – e trouxe, com o frescor da frase, a esperança de podermos fugir um pouquinho de tantas avalanches. Seja como for a forma original da ideia, adoto-a, em especial na segunda acepção. É necessário, é urgente. Mesmo dentro de um dia a dia que reconheço como privilegiado, anda pesado demais existir no Brasil, isto que não é um país e sim um estudo de caso, um zoológico de horrores históricos, um parque temático dos Jogos mortais. Se volta e meia não nos evadimos terapeuticamente do tempo, vão vida e saúde lindinhas pro espaço.

Pois pronto: evado-me. Dou-me o direito contente de ir para a cama com as palavras cruzadas mais escabrosas, ou com Dostoiévski ou com George Sand, ou com todos os anteriores, que ninguém tem nada com isso. Acho alegria em já ter postado, enviado, lavado, pendurado, guardado ou qualquer outro particípio felizmente passado (ainda que eu não passe a ferro coisa alguma e passe muito bem nesses moldes). Penso, para me alumiar por dentro, que num certo dia liberto dos calendários vou estar andando como uma local nas ruazitas de Paris, em namoro com livrarias e bistrôs e feirinhas de comestíveis perfumosos. Penso, também alumiadamente, que ainda terei uma buganvília se enredando nas grades da varanda, que ainda voarei de balão uma vez que seja, que ainda encararei Guerra e paz, que ainda aprenderei a andar de bicicleta. Talvez nas ruazitas de Paris, entre as feirinhas. 

Lembro alegremente que há milhares de filmes clássicos e ocultos a serem encontrados, quem sabe amados com furor. Há viagens inusitadas esperando ser feitas, aguardando para inaugurar partes ermas do coração. Existem milhões de chances blowing in the wind para ajudar pessoas sequer adivinhadas. Cantores podem fazer a qualquer momento versões extraordinárias de músicas que nem nos diziam muito. Pode sair do forno algum novo livro da Martha, prestes a nos aconchegar quentinhamente. Um beija-flor pode irromper na janela (às vezes irrompe!), fazendo-se delicioso por uns tantos segundos antes de ir abençoar outras casas. Nada impede que uma blusa volte redescoberta das esquinas do armário, anunciando que agora cabe. Nada obsta a que uma notinha de vinte reais retorne de Nárnia e surja sorridente no fundo da bolsa. De repente a gente se dá conta de que um vizinho violinista toca a "Ave Maria" de Schubert todo dia, às 18h (sim, sim, esse realmente existe e é diariamente aplaudido no quarteirão). Sem querer, a "Ave Maria" violinada nos puxa para instantes atemporais de cidades pequenas, idos, românticos, embora as cordas soem no meio de um Rio de Janeiro atualíssimo. E – nesses pequenos desvios coloridos – viver fica tão mais interessante, tão súbito. 

Alegria é a prova dos nove, alegre é a despedida dos trinta e nove, insistentemente alegre é a caminhada para os cento e nove; alegre a despeito de tudo, por birra e teimosia de sobrevivência. Atrás de cada portinha feliz aberta no dia, muitos séculos possíveis nos contemplam – e, assim como Paris, qualquer alternativa à lógica vigente da morte é uma festa.

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