terça-feira, 16 de junho de 2020

O necessário incômodo

Ser Único Mudança Diferentes - Imagens grátis no Pixabay

Não aguento aquele papo coach-empresarial de "sair da zona de conforto". Ora, a tal zona não tem esse nome à toa, e em geral tudo que se busca na vida é estar de alguma forma confortável, a não ser que se alimentem tendências BDSM confessas ou inconfessas. Normalmente se quer trabalhar (já que trabalhar é financeiramente necessário) no campo em que se fica mais à vontade, com o máximo de desenvoltura e segurança; quer-se um relacionamento amoroso equilibrado, decente, sem enfartes cotidianos, sem brigas e esfalfamentos; quer-se uma moradia sólida, tão longe quanto possível de áreas de risco, limpa, quitada, mobiliada, almofadada, que nos abrace antes e depois do expediente. É perfeitamente humano – aliás: animal – desejar o conforto, aconchegar-se nele na primeira oportunidade e produzir todos os recursos cabíveis para que a ele cheguemos, como um auge de evolução. Papinho de "sair da zona de conforto" is the new Revolução Industrial: na impossibilidade de enfiar os funcionários no trabalho 14 ou 16 horas por dia, hipnotizam-se os cidadãos com a lobotomia coach até que se sintam culpados o suficiente para trabalhar 16 ou 18 horas por dia – no escritório, no uber, na rua, na chuva, na fazenda e, durante as férias, numa casinha de sapê. Labute enquanto "eles" dormem, corra atrás enquanto "eles" descansam, assuma funções que "eles" não vão querer assumir, ladainham esses profetas da escravidão voluntária. Funcionários confortáveis, afinal (sem medo de desligar o celular no finde, sem pavor de perder o salário, sem desespero bastante para cumprir sua missão e a de outros dois ou três colegas demitidos), não são lááá muito lucrativos para chefes indispostos a sair de sua zoninha de conforto na Côte d'Azur. 

Mas.

Em compensação, refestelar-se em berço esplêndido até começar a dar ramos e folhas não é a melhor política em todas as situações, concordo. Precisamos do desconforto; porém não daquele que mora em conversinha de empresário, não daquele que fisicamente nos esgota e mentalmente nos adoece até o burnout (esse, por sinal, nos torna inúteis em pouquíssimos anos, e aptos a ser trocados por peças novinhas que vistam a camisa – de força – da empresa). Para nos arejar e renovar de fato, precisamos do desconforto vindo de propostas que nós mesmos fazemos e aceitamos, surpresinhas cerebrais que apimentem nossa autorrelação. Tipo? Tipo arte. Assistir a filmes que nunca pensaríamos, bem fora do circuitão: outras linguagens, outros enquadramentos, outras narrativas, outras línguas, outros cenários, outras (des)construções, outros personagens, outras trilhas. Ler livros absolutamente impensáveis há dois dias ou dez minutos; literatura árabe, sérvia, egípcia, ucraniana; poesia, se somos prosaicos eternos; romances, se só frequentamos autoajuda; filosofia, se não saímos da ficção científica. Adentrar museus ou galerias de pintura cujas fachadas nem olhamos jamais: muita, muita coisa a não ser sequer entendida, mas sentida apenas, ao menos como um desvio fascinante, uma nova possibilidade humana. Dar chance a outras bandas no YouTube. Parar por uma hora num canal de documentários. Topar uma ópera ou um balé depois de uma vida inteira dedicada aos stand-ups.

Nem precisa ser arte; taaaantas alternativas, por nos incomodarem, nos oxigenam! E juro não falar por falar, hipocritamente – já que sou uma odiante de carnaval que se meteu em pipoca de trio elétrico, uma inimiga de futebol que foi várias vezes ao estádio, uma sedentária que enfrentou arborismo, uma calada que cantou em karaokê, uma fã de permanecer limpinha que se enfiou até a cintura em lama de manguezal. Não é que goste de sofrer (eu gosto ZERO, inclusive), apenas não considero experiências saudáveis e não forçadas como sofrimento; acredito até cientificamente que nosso cérebro ama engatar sinapses onde antes era mato, cresce com o inusitado que não o agride, floresce potências fresquinhas após desafios recebidos de presente. Quanto mais esticamos os neurônios, mais eles se moldam elásticos, leves e malhadores, subitamente abertos e ventilados mesmo para o que é visto todos os dias – e que passa a ser visto todos os dias pelo ângulo de novas câmeras. Pressões externas são destrutivas, mas o cultivo escolhido de impressões internas é hobby dos mais premiantes em nosso cercadinho de ações. 

Sair da zona de conforto, sendo bom, é assim: há de ser tão mais justo quanto mais nos alertar para a zona de desconforto alheia, quanto mais nos acender o lume para o entorno social, quanto mais nos instruir sobre as forças que nos querem obedientes, quanto mais nos fizer instruir os demais a respeito do quão superiores somos à gaiolinha. Se nos aprimorar como pensantes e criativos, como amigos e empáticos, como férteis e resilientes, como solidários e humildes bem-vindos sejam o incômodo e sua pena. Tudo vale a pena se diminui o que nos apequena.

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