quinta-feira, 11 de junho de 2020

Óbvios pululantes

Poeira Porta Janela Luz - Foto gratuita no Pixabay

Às vezes a gente está cansada, apenas muito cansada do peso da conotação, por mais demasiadamente colorida que seja (ou talvez por isso mesmo), por mais derramada e fascinante. Às vezes estamos exaustos, não queremos lidar com desdobramentos. Queremos falar do vento como símbolo de nada, só como a importunação que embaraça loucamente os cabelos, esbarafunda-os sobre os olhos, perturba a saia nas estações de metrô (por que é que sempre tem um tornado morando nas estações de metrô?). Queremos olhar a nuvem gorda apenas em sua glória de chuvaréu prestes a cair, não como maus prenúncios, maus humores, obstáculos. E a pedra? Às vezes também a queremos somente pedra, pedrapedra em si mesma no meio do caminho, lindinha, redondinha, coberta de limo talvez, sem textões ou metáforas. Como são fabulosas as metáforas – mas como estafam, quando o coração só precisa do óbvio!

Há um ou outro dia em que, pelo bem do repouso d'alma, a luz é bem literalmente luz entrando pela fresta, a fresta é simplesmente a semiabertura que deixamos para não termos de lutar com o vento que é só vento. As borboletitas que esvoaçam de primavera (ih, pronto), ainda que estejamos outonais e rumo ao inverno, são insetos espalhadores de pólen, são viventes em busca de acasalamento; podem parar por 24 horas de ser fadas, flores aladas, pedaços de arco-íris, ícones do efêmero, embaixadoras da leveza? Podem as flores, por um intervalozinho de nada, ser apenas acontecimentos vegetais que olhamos com prazer, ser partes que gerarão outras partes comestíveis, em vez de representarem tudo que é novidade e juventude? O mar tem a licença de ser imenso unicamente nele próprio, sem arcar com as alegorias da força, da inconstância, da surpresa, da traição? Por um pouquitinho que seja, pode a Organização Mundial das Vozes Conotativas deixar as coisas em paz?

Tem horas que: let it be, let it go. Permita-se ao sol ser estrela, à lua ser satélite, à pena ser elemento da asa, à asa ser membro de animais quentinhos que não mamam. Até porque não é possível; não é possível evitar a beleza do óbvio mesmo por um tempinho à toa. Ainda que o coração fatigado esteja em dieta de metáfora e engula uma metonímia no máximo, o mundo transborda, o mundo é devastador: o ar em movimento faz as folhas girarem fofamente até o chão, a nuvem em algum momento não sustenta mais seus (a)cúmulos, a pedra vista em detalhe tem sempre milhões de cores e purpurinices, a luz cria jogos de sombra e dá visibilidade ao balé da poeira; as borboletas, o mar, as flores – já se extravasam em milagre sendo exatamente o que são, já não se contêm onde estão contidos, nem na ciência mais fria ficam prosaicos. E como transformar em pura objetividade uma estrela que alimenta tudo que nos alimenta? Como tornar menos romântico um astro que existe para nos escoltar e ser espelho dessa estrela? Como botar um olhar neutro sobre aquilo que desafia a gravidade sem cálculo ou raciocínio? Luta inútil: não há maneira viável de sacar o lirismo do mundo – esta ode escrita tão de propósito que continua a rimar quando não estamos olhando, e continua a espantar, por acinte, onde a linguagem nem brota. 

A realidade se impõe certamente, mas o extraordinário sempre esteve no pacote. Se, como disse Nelson Rodrigues, o Fla-Flu nasceu 40 minutos antes do nada, chegou atrasadíssimo: dois milênios antes do antes, a poesia já se havia forjado, nem que fosse pelo próprio paradoxo de sua inexistência.

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