sábado, 1 de agosto de 2020

Aos hereges

Foto profissional gratuita de homem, poesia

Quem ama poesia – esteja ou não vertida em versos, e mesmo em escrita – não pode deixar de suspirar em acordo quando Hilda Hilst diz, manda e domina: "Enquanto faço o verso, tu que não me lês/ Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala./ O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:/ 'Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas'./ Irmão do meu momento: quando eu morrer/ Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:/ MORRE O AMOR DE UM POETA./ E isso é tanto, que o teu ouro não compra,/ E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto/ Não cabe no meu canto". 

Irmão do meu momento, que com ou sem consciência se faz herege ao declarar não ter tempo ou gosto para a poesia: sem a poesia não há sentido em ter tempo ou gosto para nada. Não é questão de ditadura literária, porque, como disse acima, nem literariamente derramada em linhas a poesia precisa ser; é questão de ter bom senso para a grandeza. A poesia, modo geral, é a grandeza de tudo. É o infinito vivendo potencialmente na mínima parte de tudo. Sem essa doçura suprema que respira no ato de alguém suar em prol do alimento do filho, de trabalhar vendendo às pessoas quaisquer espécies de prazeres ou necessidades, de voltar à noite para aqueles em nome dos quais se afastou durante o dia –, sem essa macrovisão que cata a beleza e não se contenta de retornar sem ela, que alma resta ao cotidiano mecânico? Que sumo se extrai da compra e acúmulo de coisas, se só coisas são – despoetizadas, dessignificadas, desquestionadas? 

Irmão do meu momento, sei bem que a vida é dura, que o mundo não para, que o expediente não cessa; porém a vida não amolece nada se ressecamos a capacidade de olhar a lua cheia durante o engarrafamento, o mundo não se toma de paciência se servimos ou recebemos lanches ágeis e sem sorriso, o expediente não tiquetaqueia mais ligeiro se nos impedimos de admirar os movimentos líquidos de um gato, ou a mãe que beija o nariz da criança, ou o bem-humorado da tatuagem que cruza o caminho. Que em muitas biografias de extremos sofreres, de extremas desgraças haja uma amargura que esclerosa a crença e venda os olhos, acredito, entendo; mas a amargura resistente à poesia é só compreensível como dolorosa consequência, como efeito, não como método. A não ser nos casos da dor que dilacera alma e ossos, que definitiva ou provisoriamente cega o coração para o poema que escorre de tudo, é heresia grossa renegar o profundo, o delicado, o transbordante. Irmão, não é viável não haver tempo para a poesia, se há para a respiração e a fome. Irmão, não é possível não haver hora para reverenciar o arco-íris, se há para chamar o elevador. Não é aceitável inexistir o instante de estourar uma bolha de sabão entre as risadas do filho, se existe o de erguer o cotovelo para cumprimentar clientes entre as risadas de todos. Não é razoável conceber que não sobre um segundo para meter uma flor entre os cabelos da esposa, se ficam tantos para zerar o joguinho ainda à mesa da refeição. É mais que implausível, é crime de lesa-humanidade, é o vazar do que nos faz únicos para dentro do bueiro do vácuo. 

Irmão do meu momento, não são necessárias páginas, mas são necessárias pausas; é crucial, mesmo no curso da lida, não negligenciar o lido – o lido nas letras miúdas do dia, nem sempre com roupa de alfabeto, às vezes vestido de abraço ou adesivo ou canção ou borboleta. Seu ouro sozinho compra pouco, seu ouro sozinho é de tolo; somente o outro, de todos, enche o caminho de coisa infinita.

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