terça-feira, 18 de agosto de 2020

Uma porção de buracos amarrados com barbante

 deco, decoração, decorativo, Rede de pesca, cinto de salvação ...

Essa do título é a definição genial de um dos pequenos pacientes de Pedro Bloch para a palavra "rede". A criança em questão naturalmente se referia à rede tecida, à de pesca, por exemplo; porém, se por acaso estivesse aludindo à rede internáutica que ora nos une, continuaria certíssima em toda a sua filosofia. Que somos bem isto, afinal: uma enorme família de buracos emocionais que existem e se sustentam com base em todas as conexões trocadas, ou, sob outro ângulo, buracos cuja existência só se distingue em contraste com tudo que nos é comum. Por mais que nos enlacemos das maneiras mais variadas, o vácuo individual, numa rede, sempre haverá – e se deixar de haver é porque as relações saíram do formato de rede e se fecharam num véu coeso. Mas o que temos por enquanto é mesmo a rede, e o que somos por enquanto é mesmo uma porção de ausências reunidas por inúmeros fiapos de presença.

Cada um de nós é um agrupamento de faltas. Cada um de nós é um acúmulo ambulante de grandes e pequenos traumas. Foi o amor paterno ou materno que não nos bastou (ou que transbordou, paralisante, asfixiante), foi a vida familiar com amor bastante mas sem apoio intelectual, foi a solidão de filho único, foi a solidão de filho entre filhos, foi o desconforto na turma de escola, o pavor do bullying, o desconjuntamento na Educação Física, a criatividade incompreendida, o talento desestimulado, a vergonha acadêmica ou corporal, o vício e a violência poluindo a rotina, a orientação sexual não acolhida, a paixão ignorada ou zombada, a fobia esquisita que atraiu deboche. São vazios que não obrigatoriamente nos definirão – o objetivo é amadurecermos e nos retrabalharmos o suficiente para que nunca nos definam –, mas que forçosamente nos constituem. Pelas malhas dessa imensa web sem a qual já não vivemos, parece-nos de repente que todos os vazios se tangenciam, embora não se anulem; parecemos não raramente nos descobrir irmãos do mesmo fio, efeitos da mesma trama, o que pode potencializar loucuras que venham a se esbarrar, porém pode também potencializar as curas. 

Quase nos enxergo como os pequenos protagonistas do filme It, os autodenominados Otários, todos com sua história disfuncional: o menino superprotegido e hipocondríaco, o que precisa lidar com a gagueira e a culpa pela perda do irmão, a menina perseguida pela "má fama" e o assédio do pai e daí por diante. Todos solitários no mais íntimo, todos perdedores em algum aspecto, que acham no entrelaçar de suas eficiências algo muito superior a suas respectivas fragilidades – fragilidades que não deixam de existir, mas às quais os jovens heróis conseguem sobreviver operando em rede. Há poucas manifestações tão exemplares de uma porção de buracos amarrados com barbante, de uma corrente rija costurada de fraquezas. Não temos um palhaço assassino em nossa cola (apesar de eu não me opor a que o Coringa fique na minha, mas isso já é outra história); ainda assim, temos um mundo exterior bastante faminto de nossas presas interiores, e só um enredo coesíssimo de palavras, presenças, olhos, braços, exemplos é capaz de preparar armadilhas seguras contra os predadores que passeiam no entorno.

Veias, artérias, brônquios, sinapses – nossos (lindamente tecidos) corpos avisam de nascença: somos feitos de redes. Somos construídos de laços. Nenhum homem é ilha, todo homem é malha; e todo homem é fio da meada universal que ninguém desembaraça sem ajustar todos os percursos.

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