sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Vestir o painel de controle

Foto profissional gratuita de céu, espelho

Ainda na vibe do Dia do Psicólogo, mais conhecido como ontem, lembro uma frase lindona de Carl Rogers a ser estampada nas paredes, almofadas, camisetas, cabeças: "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como sou, então eu mudo". Isso é de uma precisão redondamente maravilhosa. Note-se que a autoaceitação sugerida por Rogers nada tem a ver com gabrielismos de nascer assim, crescer assim, ser mesmo assim, para sempre assim – o que não é aceitação, é um chafurdamento no comodismo, no medo, na preguiça, ou representa mesmo situações mais sérias e patológicas. Reconhecer-se e abraçar-se como de fato se é envolve necessariamente perdão, mas não autoindulgência. O perdão é produtivo, a autoindulgência é passiva; um, caminhante, e a outra – paralisante. Quem se aceita é porque finalmente encarou o desafio de olhar-se com sobriedade (o que exclui pena e inclui doçura), sem megalomania e sem depreciação, sem passar pano nos defeitos mas também sem entrar na trip infantil e chantagista de querer ou a perfeição, ou nada. Aceitar-se, em última instância, não está atado a aprovar-se, e sim a enxergar-se com clareza bastante para não virar refém de si mesmo.

Pois então: só pessoas que não são reféns podem mover-se, podem caminhar no sentido transformador da coisa. As que não se impõem um espelhinho interno; as que vivem um autorrelacionamento abusivo que acorrenta dinamitando a confiança; as que se atam e se atêm a uma self-narrativa irreal que justifica a permanência na caverna; as que fazem piada de si antes dos outros, e se escondem à luz do dia da necessidade de mudar hábitos; as que posam de desconstruídas às vezes por puro terror de reconstruir-se – todas essas, porque de várias maneiras e com várias estratégias e por vários motivos desviam o olhar do material que têm em mãos, consequentemente permanecem na ignorância de como moldar esse material. Suponha-se que um tenha massinha, outro tenha cimento, outro ainda tenha bronze, um quarto tenha argila, um quinto tenha granito: nenhum dos elementos é ruim ou extraordinário itself, mas adiantaria que a massinha teimasse em se tornar fundação de prédio, ou o granito cismasse de ser brinquedo na pré-escola, ou o cimento e a argila se metessem a medalha olímpica e assim por diante? Não se ver, não se pesquisar, deliberadamente desrespeitar as próprias possibilidades (para mais ou para menos) equivale a adentrar o Reino da Frustração com cinco malas de 32kg e mais um caminhão da Granero – e se entulhar com tudo 24 horas por dia num quarto de hotel. Nada desencoraja mais o movimento do que não ter mapa, não ter plano, não ter projeto, não ter informação, não ter propósito, não ter de si uma paginazinha de Wikipédia capaz de guiar a ação.

Aceitar-se NÃO É limitar-se: é libertar-se para ser. Aceitando-se, a criatura se veste de seu painel de controle; é aquele ali que está disponível, não é outro; não é por manuais com outras funções e outros botõezinhos que alguém consegue ser funcional e se dirigir. Se não tenho o desejo de ser mãe (e não tenho), acolho essa característica e não tento protagonizar Os Busbys + 5, que não vai prestar. Se assumo que meu negócio é mesmo violoncelo, grafite, mecânica, turismo ou criação de joias, largo finalmente o curso de Odontologia em que a família de dentistas aposta, mas que pelo resto da vida me faria sonhar com amargura outríssimas formas de deixar gente de boca aberta. Se percebo mui honestamente em mim que minha orientação sexual não é aquela que mamãe, papai, vovó e vovô imaginam, adoto com amor o que sou, e não uma projeção externa de um eu impostor que só roubaria espaço e saúde do verdadeiro. Se consigo admitir com ternura que eu – um não-super-herói – estou sujeito a uma depressão, a uma qualquer tendência viciante (consumismos, acúmulos, jogos, substâncias, repetições), a uma falha na condução do casamento ou dos filhos, não poso de inoxidável: me vejo livre e pleno no ato de marcar consulta, fazer pergunta, pedir ajuda. Aceitar-se, evidentemente, não garante que as coisas serão fáceis – mas é a ÚNICA maneira de garantir que não sejam impossíveis. 

Cada um de nós é foguetinho que só cumpre a função de elevar-se quando corrige cálculos e rotas de nossas explosões anteriores. Em não nos refazendo, parecemos traiçoeiramente intactos, mas viramos monumentos de ferrugem e não saímos do chão.

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