sábado, 29 de agosto de 2020

E presunto também

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No Frases de Crianças, mais uma daquelas historinhas suculentas (literalmente, no caso). A mãe ou pai de Miguel, um pitico de dois anos, estava rezando com o menino e pediu durante a oração:

– Senhor, nos dê saúde, segurança e sabedoria.

A que o fofildo complementou, de mãozitas postas:

– E presunto também, porque eu adoro.

Evidentemente, numa oração devemos mesmo ser pais ou mães de Miguel, pedindo o prioritário: energia física, mental, emocional a ser empregada em fazeres cotidianos ou extraordinários, e a sabedoria que tudo orienta e nada mais é do que a roupa intelectual do amor. O próprio rei Salomão foi tão, tão frugal nas demandas que as reduziu a um só denominador, à essência da essência, e se ateve apenas à sabedoria. É essa, em tese, a alma adulta; deve(ría)mos ter boas bússolas e bons astrolábios ao desbravar escolhas e reconhecer facilmente o crucial – simples, firme e pleno. Adultos são (ou foram concebidos para ser) crianças de foco aperfeiçoado, com oclinhos de maturidade filtrando as miopias e ajustando-lhes a nitidez para o bem e o bom, o justo e o necessário acima de tudo, no matter what. Adultos proficientes, em suma, sabem o que é preciso querer primeiro.

Mas crianças – inclusive as que nos habitam – sabem o que é permitido querer também

Claro, o humor da anedotinha está no fato de o pequeno Miguel trazer o frívolo para o sério, o mundano para o espiritual e filosófico, o supérfluo para o essencial; porém Miguel pode, Miguel tem dois anos, e, se seu aparte fofinho não funciona no campo da oração, funciona no do símbolo. Podemos estar totalmente imersos em ideais e urgências, mas isso não nos impede, uma vez encaminhadas as prioridades, de buscar o também. Nossa sisudez e eficiência nas tarefas não nos impõe voto de pobreza, nossa responsabilidade de alunos nota dez não nos tolhe a dança, nossa confiabilidade como cirurgiões ou contadores não briga com a fantasia de Pequena Sereia no carnaval. Sim, comunista pode ter iPhone se desejar, e pode usá-lo na militância vivamente, aliás: quem curte distribuir miséria é banco, a gente quer mais é que o trabalhador tenha acesso a tuuuuuudo que produz. Sim, religiosos como o padre Fábio de Melo podem fazer tatuagem e post zoeiro; por que carambolas um desenho de abelhinha ou meia dúzia de risadas em nada ofensivas deporiam contra a fé de alguém? esse povo implicante mora na Idade Média antirriso de O nome da rosa? (Bem dizia São Francisco de Sales ou Dom Bosco, não sei com certezinha: "Um santo triste é um triste santo". Tooooma, sociedade!) Sim, pessoas que recebem auxílio emergencial podem comprar sua cervejinha se acharem que as despesas principais estão cobertas, e ninguém tem nada com isso, criatura alguma está expulsa dos prazeres inocentes para dar satisfação aos fofoqueiros e hipócritas. Sim, estão liberados para todos: alegria à prova de medo, lazer com todas as medidas de segurança, pequenos luxos que não venham de nenhuma exploração e nenhuma fome alheia, agrados à autoestima que não sejam uma trip maluca do ego, música que não aglomere nem irrite vizinhos, sonos longos, sonhos de viagem, viagens efetivas (pós-pandemia, obviamente), lanchinhos nham-nham com moderação de gorduras e açúcares, teeeeeeeeempo livre para si, para a família, para a vida, para o nada. Tempo, tempo, tempo, tempo. Porque somos humanos. Porque essa verdade exclui a hipótese de sermos máquinas. Porque o trabalho é uma contingência, não um ídolo. Porque somos donos daquele aparelhinho que tem WhatsApp, e não o contrário. Porque os filhos crescem mais rápido que o ciclo de uma borboleta. Porque não somos obrigados a virar mártires do primeiro bilhão de ninguém. Nem se (numa realidade alternativa) fosse do nosso. 

Um brinde, pois, ao presunto e a todas as metonímias felizes dos tambéns que roseiam a rotina. Um brinde – para chamar à dança Oswald e Clarice, já que a literatura é sem dúvida um de meus presuntos maiores – à contribuição milionária de cada pedacinho de mundo que nos enche, senão com a pior, talvez com a mais perigosa vontade de viver.

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