terça-feira, 11 de agosto de 2020

Sorrir sem querer

 esperando na janela 5 | Urca, Rio de Janeiro Ainda me lembro… | Flickr

Mais uma daquelas fofurices da página Frases de Crianças, no Face. A pequena autora da vez, Manuela, mandou do alto de seus potentes dois anos:

– Mamãe, eu gosto muito do papai.

– Gosta, filha? Por quê?

– Porque quando ele chega eu sorrio sem querer.

É isto: sorrir sem querer. Com a quinta parte de uma década de vida, Manuzinha já sabe ou já intui que há os afetos dos sorrisos dosados, controlados, conscientemente distribuídos de acordo com a performance social – e há os afetos em que o componente teatral é de todo desnecessário ou simplesmente vai para o brejo, uma vez que personagem e ator se unificam. Não que estejamos interpretando uma comédia ou vestindo hipocrisia ao encontrar conhecidos dos quais gostamos, e para os quais, portanto, nos obrigamos a sorrir, ainda que sem uma alegria delirante: nós os apreciamos de fato, nós os amamos até; apenas eles não nos causam reação tão imediata, tão medular que se antecipe à própria consciência dos "deveres" de civilidade. O script vem antes, no caso – mesmo que por um milionésimo de segundo. Quando o afeto anda no nível do fascínio, o script chega depois. 

O script chega depois se a ternura é não necessariamente mais legítima, mas mais apaixonada com certeza; alumbramentos assim se manifestam naquele plim-plim de intervalo da Sessão da Tarde que faísca, entre o sorriso e os olhos, antes que possamos contê-lo, antes que quaisquer conveniências ou timidezes o mascarem. Não é o sorrir no automático, é o sorrir in natura, muito anterior ao automático; o sorrir sem mecânica, espontâneo, primal, reduzido ao id. Talvez a plim-plice que Bentinho julgou captar nos olhos de Capitu, vai saber? (o que não prova absolutamente NADA, fofinhos). Lembro ao menos duas cenas, além de milhares de outras, plenas desse deslumbre colhido em botão. Uma é do eterno Em algum lugar do passado, em que a atriz Elise (Jane Seymour) só consegue ser fotografada em seu esplendor quando deixa de estar ali simplesmente posando e se ilumina, incandescente de amor e beleza, ao perceber a presença de Richard (Christopher Reeve) a observá-la. Outra é do recentíssimo e já clássico Retrato de uma jovem em chamas, no qual, em certo momento, a jovem do título – Héloïse, interpretada por Adèle Haenel – não sustenta a seriedade ao posar para a pintora Marianne (Noémie Merlant), mais conhecida como o amor de sua vida: retratada e retratante procuram inutilmente manter o puro profissionalismo, os lábios sorriem frouxos, os olhos gargalham encantados, não há prazo de entrega que detenha a felicidade em torrente.

Óbvio que não trato do riso nervoso – que, mais do que qualquer outro, é sintoma de alguma opressão social –, mas de seu contrário: do sorrir que escapa no máximo do relaxamento, na queda de todas as defesas. O sorrir de criança ao primeiro relance da árvore de Natal carregadinha de pacotes, ou à primeira entrada na Disney, ou ao primeiro aperto no novo cachorrinho. O sorrir de de repente nos darmos conta da lua cheia, descobrirmos que foi renovada a série favorita, ouvirmos nossa língua em solo estrangeiro (OK, depende do que ela estiver dizendo), entrarmos em água de mar quentinha, abrirmos um presente estranhamente perfeito. O sorrir da camada original, a que não mente, a que dita a pressão e os batimentos, a que responde ao polígrafo independentemente do que nossa voz declare. O sorrir que publicamos antes de sequer pensarmos em parar as máquinas.

Sorrir o sorriso involuntário é dar declaração sem juízo – mais carimbada e autenticada que declaração em juízo. Almas normalmente se mantêm fora dos autos e transbordam em vários papéis sem firma reconhecida.

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