quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Achamentos mágicos

BoredPanda/Reprodução

Estou absurdamente apaixonada pela mensagem que a menininha Poppy deixou para os compradores do motorhome de sua família – com inglês e letrinha impecáveis, aliás, como se não bastasse o atravessamento de todos os níveis do fofurômetro: "Oi, meu nome é Poppy e eu tenho 10 anos. Este era nosso motorhome e a gente viajou metade da Austrália nele. Esta era a minha cama (a cama de cima) e ela era muito boa. Esta gaveta (onde vocês acharam a carta) é onde eu guardava todas as minhas coisas especiais, que eu não conseguia deixar para trás quando nós íamos viajar. Espero que vocês aproveitem bastante este motorhome. Eu estou na quinta série e sou muito boa com arte. Tenho uma mensagem para vocês: sigam seus sonhos e, se vocês tiverem de escolher entre estarem certos ou serem gentis, escolham ser gentis. Aproveitem este motorhome". (Usei aqui, como base, a tradução publicada no site Megacurioso, com algumas adaptações minusculinhas.)

Para mim é fascinante a ideia de uma minicasita temporária sobre rodas – embora eu não tivesse coragem de arriscar algo assim no Brasil, por motivos infelizmente adivinháveis –, mas não hesito em considerar duas vezes mais fascinante esse tipo de esbarrão delicado com o universo de alguém, com a trilha de migalhas de pão que vai dar numa história, numa realidade pessoal, numa subjetividade em flor. O mais provável é que eu (sendo a destinatária) emoldurasse a carta fofíssima e procurasse manter contato com sua pequena remetente, enviando-lhe fotos atualizadas e felizes das viagens do trailer que lhe foi tão querido: um mínimo agradecimento pelo "testamento" generoso, pela transferência de posse tão feita de entrega e coração. Há um encanto possante nesses laços do acaso, nessa convergência de biografias costuradas por uma herança simbólica – e não é de hoje que sou louca por mensagens na garrafa e afetos que brotam do improvável; com idade ainda inferior à de Poppy, eu às vezes lançava bonequinhas de papel em lugares públicos, para que vivessem suas próprias aventuras e conhecessem alguéns; tive pen pals na infância e adolescência; já adulta, participei de uma ação em que se perdiam livros destinados a encontrar novos donos. Fora a paixão eterna por topar com diários (perdidos, claro; jamais sugeriria que se invadisse algum), com cartas antigas, com fotos e livros assinalados por datas, anotações e dedicatórias, com todas essas emanações de outros seres, outras vivências. Apesar de introspectiva e refratária a muita intimidade presencial, a muitas exigências em tempo real, sou amante fixa dos achamentos mágicos, escritos, desenhados, lentos; dos enredos que enredam amigos puxando um fiozinho do coração de lá, outro fiozinho do coração de cá, inusitada mas pacientemente. Daí o adorar brechós, sebos, feiras de antiguidades e todos esses redutos de tesouros que já chegam narrativos, impregnados de outrem.

Mesmo o meu filme mais acarinhado, O fabuloso destino de Amélie Poulain, é uma denúncia da sede de elos históricos que me habita. Quem já assistiu sabe que a protagonista engata sua "jornada do bem" após descobrir, escondidinha em seu apê, uma caixita cheia de coisas especiais de criança – brinquedos e memórias de menino –, e especialmente após se comover observando a emoção do dono (já um homem de meia-idade) ao recebê-la de volta. O amor também aparece para Amélie em forma de devolução de um tesouro, uma vez que ela se torna achadora e guardiã do álbum de recortes que pertence a seu futuro boy. Era doçura de mais para que eu não casasse de véu e grinalda com essa história formada de histórias que andam de braços dados – não em núcleos semi-independentes, como num Crash ou num Babel da vida (que nos próprios títulos indicam desacerto e colisão), e sim numa harmonia fabulosa ou de fábula. Convenhamos: viver em puro registro babélico nos estraçalha. Carecemos de motorhomes com asinhas mentais e gavetas corretamente abastecidas de fofura; carecemos de tempos só-buscas, só-encontros, sem esse tanto de embates, de capotamentos, de choques. É preciso um retiro. É preciso um respiro para lidar com o humano suavemente, para fazer-nos encontrados e encontráveis. É preciso um reestruturar que nos torne casas sobre rodas, refúgios ambulantes, guardadores potenciais uns dos outros, outros dos uns, irmanados apenas por viagens e demais experiências felizes.

E é preciso, é urgente, é fundamental, é desesperadamente PRA ONTEM um reestruturar que torne bilhetes fofos deixados em motorhomes o único tipo de notícia possível sobre menininhas de dez anos.

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