sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Tá lá o corpo (escondido) no chão

Unwitting Casualty | The rain, a carnival; the umbrella, a d ...

É como tuitou o ator Paulo Vieira a respeito do caso Carrefour, em que um trabalhador sofreu um enfarte fulminante e permaneceu "escondido" por horas entre barraconas de praia, até que o corpo fosse removido do meio da loja e do expediente: "Se for pensar bem, são mais de 100 mil pessoas cobertas por guarda-sóis pra 'economia seguir'". 

Sim. São mais de 100 mil – em verdade, já mais de 112 mil – pessoas serialmente camufladas pelo "governo" debaixo dos mesmos números que deveriam escandalizar-nos; 112 mil histórias não aparentadas dos donos e deuses do mercado, no máximo conhecidas longínquas, no máximo funcionárias que eram praticamente da família, e por isso sujeitas à racionalização que se usa sisudamente com quem pertence de fato à família dos outros. 112 mil existências inteiras, com nomes, endereços, RGs, primeiros beijos, lembranças de viagens, reclamações por causa de tupperwares surrupiados, músicas que as levavam a aumentar o volume, camisas velhas que todos odiavam, receitas que grudaram na panela, abraços que grudavam nos filhos, fotos de réveillon, tradições de Natal, fobias de altura e barata, poemas copiados na agenda, lágrimas disfarçadas no cinema, sambinhas no pé, ideias na cabeça – 112 mil trajetórias feitas de tudo que os amados sabem e de tudo mais que nem saberemos nunca, universos completos, obras complexas, reduzidas pelos donos e deuses do mercado a pontos de um gráfico inconveniente que faz o comércio tropeçar.

São centenas de milhares de senhores Moisés que vivem guiando, orientando, possibilitando, abrindo mares, administrando perrengues, porém morrem sem entrar na terra prometida dos capitalistas, reservada para os same old integrantes do cercadinho VIP – aqueles que não podem perder quatro horas, duas semanas, cinco meses de lucro. São centenas de milhares de vítimas alimentadoras do Minotauro; não largadas num labirinto literal, mas enroladas num ciclo de auxílio emergencial que não sai, de ônibus que chega lotado, de metrô que chega lotado e sem janela abrível, de aplicativo de entrega que não dá direitos, de empregador que não fornece EPIs, de empresário que força para reabrir escola, barzinho, boate, academia. São centenas de milhares de médicos, enfermeiros, domésticas, atendentes, vendedores, entregadores, babás, motoristas sacrificados às conveniências dos gabinetes, vampirizados pelos dependentes de ar-condicionado, imolados nos templos da Economia, assim mesmo em maiúscula, esculpida em mármore. A Economia (com muito melhores assessores de marketing que a vida mesma) não pode parar, só pode pairar formosa e absoluta – sem baixar os olhos aos mortais, sem olhar para os lados, sem verificar de quem são os ossinhos que anda esmagando; uma potência a pleno vapor. Que chato que nós sejamos a lenha.

São 112 mil, caminhando para 113, para 200, para milhão. Não importa, não fechemos a porta, não podemos parar. Esconder corpos em nome da programação normal é ou não é especialidade da casa? Os índios há séculos genocidados, os africanos sepultados no mar durante o sequestro, seus descendentes recorrentemente encontrados por balas perdidas, os resistentes à ditadura suicidados nas prisões e misteriosamente dissolvidos no ar: desde sempre construímos um sólido, robusto currículo. O Brasil é um imenso serial killer com mais de 500 anos de experiência em ocultação de cadáver.

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