segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Sem querer querendo

Inspiração Motivação Vida - Foto gratuita no Pixabay

Uma constante em entrevistas com escritores e demais fabricantes de histórias – incluo nisso os cineastas, músicos, pintores, escultores, desenhistas, porque verbal ou não verbalmente é tudo uma história de dentro, ou não? – é a pergunta a respeito das inspirações. De onde vem a inspiração, de onde vêm as ideias?, querem sempre checar os jornalistas. O natural quase combinado é que se responda: vêm de toda parte, de uma conversa ouvida, de uma matéria a que se assiste no JN, de uma notícia que pipoca no UOL, de um caso familiar, de um filme, de um livro, de um transeunte na vizinhança; e é tudo absolutamente verdade. Mas nem sempre as ideias chegam assim súbitas e românticas, como aquele cão fofíssimo que, outro dia, adentrou o carro que um casal deixou aberto e foi adotado. Grande parte das vezes, deve-se ir de propósito à fonte para adotar uma ideia, tal qualzinho se vai a um abrigo de cães e gatos fofíssimos para já sair de lá com um amigo nos braços. Ideias, feito espécimes raros, operam uns 30% no acaso e uns gordos 70% na teimosia da busca.

A busca teimosa nada mais é que um estudo mais ou menos ordenado do mundo, mais ou menos organizado, mas continuante sempre. Tipo: pegar Drummond sem método ou caminho específicos, pegá-lo consistentemente anyway, e beber e beber e beber dos versos até que estejam suficientes para fermentar em algo novo. Tipo, também, escarafunchar sites de reportagem e cultura mesmo sem necessidade determinante, mesmo sem uma dúvida particular, mesmo até sem curiosidade voltada para os diversos assuntos, e apenas com o compromisso consciente de se embrenhar no que é humano para se oferecer a uma possível paixão mental. Ou assistir a produções cinematográficas de várias vibes, várias épocas, ainda que por mera "obrigação" de conferi-las para que a cabeça se higienize convenientemente. Não é de sacrifício que se trata, mas de procura, de práticas decididas (e não passivamente preguiçosas) de oxigenação cerebral; de práticas de insistência em pegar estradas não favoritas por gosto e facilidade, porém de potencial imenso. Com ideias nem sempre se esbarra na fila do banco ou na padaria: podem cair sim em nosso colo, mas é bem provável que careçam do empurrãozinho de um Tinder.

Não é raro, assim, que artistas se frequentem para apresentar-se estímulos mútuos – uma verdadeira feira de puppy ou big ideias da qual é difícil que cada um não saia com um filhotinho de projeto debaixo do braço. É saudável, é vital para a criação que haja conversa, troca, leitura em muitos níveis; que haja o hábito de visitar inspirações residentes em bibliotecas e museus, a fim de uma consultoria de possibilidades, formas, olhares; que haja não um adestramento – que parece mecânico –, mas de qualquer forma que haja um educar da visão para o belo, o refrescante, o criativo, o impensado que mora nas coisas pensadas. Mesmo a inspiração aparentemente facinha costuma sorrir, porém só excepcionalmente assobia, e tende a dar mole apenas para quem já estava olhando. Ideia é troço que gosta de ser seduzido também quando se fantasia de espontâneo; para termos o privilégio de ser abordados por ela, precisamos desde antes estar caminhando com decisão e vontade de amor em sua direção. 

Como o esperto cãozito que escolheu seus novos papai e mamãe, ideias nos adotam quando lhes deixamos o convite das atenções e portas abertas.

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