sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Perfume

Foto profissional gratuita de água, close, cor

"Eu me perfumo para intensificar o que sou", Clarice disse. "Por isso não posso usar perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E, como toda arte, exige algum conhecimento de si própria." 

Concordo em gênero, número e aroma; não poderia concordar mais. Até por volta dos 25 anos, é verdade, usei um pouquinho de todas as lógicas de perfume: o que tinha, o que me davam, o que conhecia de a irmã usar, o que servia por simplesmente ser perfume, ainda que no fundo me desagradasse. Usei uns porque significavam outras coisas – cheguei, por exemplo, a ter na adolescência uma fragrância chamada Topázio, não escolhida por olfatice, mas apenas por carregar o nome e a tipologia da novela venezuelana que eu amava –, tolerei cheiros que depois me dei conta de odiar (feito os amadeirados), encarei essências que geravam espirros, passei pelos momentos de alternar entre três ou quatro preferidas. Com algumas havia maior identificação, houve maior persistência, porém a paixão definitiva não tinha havido – aquela alma gêmea olfativa da alegria e da tristeza, do total encaixe, da fusão absoluta.

Até que soaram os sinos, justamente na época da novela Alma gêmea (ora, se não é a mão invisível da cafonice romântica tecendo os fios). O Boticário lançara novo irmãozinho da linha Floratta, já muito minha frequentada e íntima: o Floratta in Rose – atualmente sem o in. Nada tinha o perfume a ver com a novela, mas era engraçado o tecido do título, do fato de as rosas serem importantes no enredo, do fato muito mais relevante de eu amar rosas, adorar rosas, querer engolir de paixão todas as rosas. Intuí que o Floratta in Rose era meu número. Ao senti-lo, tive certeza. E já lá vão quinze anos de um casamento monolítico, fulminante, inderrubável; nunca mais troquei de parceiro, nunca mais comprei outro. (Outro tipo, é claro: basta checar minha ficha corrida no cartão da loja para ver que são litros e mais litros do bichinho por ano.)

O curioso é que tanto o Floratta se fundiu a mim, intensificando-me sem contrariar-me, que quase desde os primeiros tempos já não o sinto. Verdade: não o sinto. Para não dizer que não o percebo at all, sinto-o exclusivamente no instante em que o ponho para sair, e depois não mais, embora todos o notem em mim a qualquer hora do dia. E como cúmulo da impressão de me haver confundido totalmente com essa segunda pele aromática, declaro-me também incapaz de identificar meu próprio perfume em qualquer outra pessoa; posso apontar vários com facilidade, ao andar pela rua – o meu, não. Para meus sentidos ele parece inexistir em separado de mim. Tão amalgamados estamos que constantemente ocorre o que me encanta e impressiona: vários e vários me dizem "antes de te ver eu sabia que você estava aqui", "professora, senti o seu perfume". Feliz-da-vidamente, constato ter atingido a fidelidade essencial em todos os sentidos – e nos sentidos de todos. Em nada me preocupa, aliás, responder às frequentes perguntas sobre o nome da fragrância. Alguns indagam com certa timidez, compreendendo que há pessoas ciumentas do seu perfume, como um segredo; mas não sou dessas, por motivos simplíssimos: primeiro (e aí se trai minha praticidade inata), quanto mais gente consumir meu Florattinha, menos chances existem de o Boticário de repente ter a péssima ideia de tirá-lo de circulação; segundo (e aí se vê que a poesia, escoltada pela ciência, não me abandona tampouco), não é por milhares usarem nosso perfume que nosso cheiro deixa de ser exclusivo. A coisa vai muito além da química posta no frasco e vendida pela loja. Em cada pele, com cada temperatura, com cada hormônio, sob cada percepção a mistura se combina diferente, cai diferente como uma roupa. Como uma profissão. Como um amor.

Tim-tim pois, Floratta querido, à transparência feliz das nossas bodas de cristal, do nosso match de aço, poderoso, decisivo. Antes se multiplicassem no mundo outras tantas maneiras tão líquidas e fáceis de se ver la vie en rose.

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