segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Janela discreta

 Foto profissional gratuita de cortina, dedos, dentro

Era manhã de sábado – o que costuma haver de mais ensolarado na semana, ainda que chova. Não chovia. Eu estava recém-sentada diante do computador, ele se espreguiçava e iniciava, meu olhar aguardante se desviou para além da transparência das cortinas. Com a luz lá fora e a finura do tecido, eu via, embora não fosse vista. E vi. Acidentalmente vi uma vizinha do prédio em frente abrir a janela, fazer o sinal da cruz e debruçar-se um pouco, com as mãos postas. Achei curioso que se postasse à janela para fazer suas orações, rezar o terço talvez, quando mais ou menos entendi a cena: ela chorava. Chorava e rezava num ponto possivelmente invisível para quem estava dentro – aquém da transparência das cortinas –, preferindo calhar de ser observada por alguém de fora. Mas obviamente não viera expor sua dor; nem desconfiava de que eu pudesse vê-la, e seu jeito de olhar vagamente de um lado para o outro sem de fato enxergar, enquanto se concentrava no que lamentava ou pedia, sugeria que não devia haver rosto humano nas imediações para acanhá-la. Por um segundo, pensei em revelar minha empatia escrevendo em alguma superfície: "Vai ficar tudo bem"; porém o mais provável é que não desse tempo, ou que fosse mesmo invasivo, impróprio. E se fosse caso de morte na família, ou qualquer outra situação de excessiva delicadeza em que, ao menos nos momentos próximos, não pudesse ficar tudo bem? Apenas a acompanhei em discreto silêncio e solidariedade discreta, até que ela fizesse novo sinal da cruz, deixasse o parapeito e mergulhasse outra vez no convívio de quem quer que fosse, de quem quer que ela (talvez generosamente) se escondia.

Vizinha que não conheço e que chorava na janela: não tenho ideia se sua mágoa era por doença familiar (algo em sua linguagem corporal não me permitiu achar que fosse a sua própria), por falência ou falecimento, por brigas e rupturas entre parentes, por mil e um outros desgostos que nos sentimos incapazes de controlar, que nos varrem, nos atarantam. Acredito não seja nenhum tipo de violência doméstica: sua vivência parece tranquila e em sua expressão não havia medo ou horror, mas imensa tristeza – a tristeza da perda ou da preocupação. De qualquer modo, por mais que se trate de um problema provisoriamente incontornável aos nossos limites humanos, gostaria que você pudesse saber que não está humanamente só; que, se bem que a distância não seja de grande consolo, rezamos juntas num breve encontro de intenções; que mesmo as janelas caladas, insuspeitas, podem estreitá-la numa amizade improvisada e momentânea; que o mundo não é um indiferente crônico, um ignorador serial, apesar de nem sempre os apoiadores quebrarem o anonimato. Gostaria que você pudesse saber que sua dor de mulher (quem sabe se de mãe, de avó, de esposa, de irmã) ecoa no coração de todas as mulheres; que a maioria absoluta de nossas companheiras a compreende com perfeição, já que normalmente somos as carregadoras oficiais de dores, as acolhedoras, as resolvedoras, as roteadoras. Vizinha: assim como quase todas, você não parecia estar rezando por si. Ainda que estivesse, tipicamente se ocultou dos olhares que lhe são mais importantes, afastou-se do campo de batalha para recarregar, preferiu fortalecer-se sozinha a possivelmente gerar alguma apreensão entre os seus. Todas as mulheres entendemos. Todas a abraçamos. As demais janelas, feito as rosas, podem não falar, mas veem, pressentem – e eu queria que conseguissem exalar em devolução qualquer essência que lhe tenha sido roubada. 

Fique bem, vizinha, fique ao menos em paz durante e após esse enfrentamento. Em frente haverá janelas novas a descobrir e descerrar; em frente haverá sábados inéditos, sóis fresquinhos e amigos revelados ou ocultos. De longe e ocultamente eu endosso seu amém, desejando-lhe tantas e tão mais felizes estreias quando se reabrirem as cortinas.

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