quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Brevíssima história do tempo

Borboleta Do Ciclo De Vida - Foto gratuita no Pixabay

Adoro o cheiro de possibilidades pela manhã. O sono aparentemente reboota o mundo; é o mesmo mundo de ontem, complicado e pandêmico, mas quando a gente acorda e reestreia nem parece, o ar entra fresquinho da janela e o pensamento é quase outra vez bebê, tateando e se adaptando. Ainda não estamos exaustos de notícias, ainda não almoçamos uma série de debates, abrimos jornais e redes com um pouco de 25 de dezembro no peito – como se qualquer presente sob a árvore fosse plausível. 

Não sou perfeitamente matinal, I mean, gosto do recém-nascer do dia só se não for obrigada ao excessivo cedume, de preferência se não for obrigada a nenhuma expectativa além da borbulhante "vamos ver o que tem pra hoje". Sou prática, mas definitivamente nada metódica, e pasmo de ver alguém (sem nenhum comprometimento cerebral que puxe para a repetição de horários e até a exija, por motivos terapêuticos) apegado à mínima rotina, agarrado à total previsibilidade. Evidentemente tenho rotinas, porém não me oponho a que o dia me sequestre para Paris. De manhãzinha, em especial, existe ainda essa quase fantasia do tudo: podemos entrar no site do UOL e descobrir que tem vacina ou meteoro, que o coiso renunciou, que a invasão alienígena já apontou na esquina, que uma pessoa amada ganhou o Nobel. De manhãzinha a massa ainda não recebeu tempero nem formato, por mais que racionalmente saibamos que a data já chega para nós usada, que o Japão e a Austrália já andavam a pleno vapor. Não importa; toda folha do calendário aterrissa inédita. Se estávamos literalmente inconscientes, nossas 24 horas permanecem na infância, e tudo podem ser quando crescerem.

Note-se que só tenho essa visão poética das horas inaugurais após a primeira amamentação de cafeína; até então, assim como na introdução da vida, é tudo muito choroso. Mesmo ao longo de décadas, o mundo continua parecendo hostil e confuso no abrir inicial dos olhos. Depois a mesa do café nos pega no colo, nos fornece alguma quentura – e somente aí, mais consolados do pós-parto, principiamos essa meninice diária de tudo pretender e esperar. À medida que o cuco vai acrescentando cucadas a seus anúncios, vamos envelhecendo em músculo e espírito: presenciamos explosões em Beirute, morrem pessoas que aperfeiçoaram o planeta, lugares queridos fecham as portas, as coronews se atualizam, ministros pelejam ao máximo contra nossos interesses, praias se enchem, ruas não se esvaziam, boiadas são passadas sobre a Amazônia, olhos e costas e cabeça cedem ao peso de tanto computador e tanto celular e tanto desgaste e tanta reportagem. O coração, à tarde, está enrugado; o expediente segue e ele segue aos trancos, moído. A tarde é para os fortes porque já não tem inocência, mas a aposentadoria ainda tarda. Enfim a noite nos recebe idosos do combate bem combatido, abarrotados de horas que cansam arrastadas ou corridas – e acalenta redescobrir inocência na exaustão justificada. Há muito de pós-parto no pós-luta. Com a diferença de que, no pós-luta, nós mesmos nos parimos e ajudamos outros tantos a vir à luz.

Madrugada finalmente, madrugada e mais madrugada, um mar amniótico que nos realimenta as esperanças e os possíveis. O sono aparentemente reboota o mundo.

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