sábado, 8 de agosto de 2020

Muita coisa feliz ao mesmo tempo

 Página 14 | Fotos edificio rosa libres de regalías | Pxfuel

Deve também acontecer com vocês o fenômeno de não desejar ter outra vida na prática, mas esparramar-se por outras realidades em teoria. Ao estilo de Alberto Caeiro quando dizia querer às vezes ser cordeirinho, "Ou ser o rebanho todo/ Para andar espalhado por toda a encosta/ A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo". Sabem? Reconhecem o sentimento? Eu me reconheço fundo no coração entornado de Caeiro, que deve ter descrito melhor do que ninguém na Terra a ânsia da experiência múltipla. Em nenhum momento quero não ser exatamente o que sou e fazer precisamente o que faço, porém é quase impossível não projetar em modo simultâneo impressões distintas (por isso mesmo a sede insaciável de arte, que é "uma confissão de que a vida não basta", nas palavras do próprio "pai" de Caeiro – provavelmente o maior exemplo humano, aliás, do que é andar espalhado por toda a encosta). Que outras coisas felizes seria eu não aqui, mas ainda agora, acrescentadas às que tenho e sou?

Eu seria a criança que está vivendo a infância mágica das casas na árvore, regato no quintal, bichos e mais bichos no jardim de flores e mais flores, o dia inteirinho liberto de preocupações de mercado e farmácia, o dia inteirinho empenhado em incursões na floresta plena e exploração de grutas misteriosas. Eu seria a dona de um castelo interminavelmente repleto de cômodos, não por luxo (que não cobiço), mas por estatística: quanto maior o número de quartos, salas, saletas, bibliotecas, maior a chance das passagens secretas que tanto amo, da escada abandonada que gerações não viram, da história emparedada que a todos escapou. Eu seria a vivente da Toscana, tomando o desjejum – e as outras tantas refeições – em meu terracinho com buganvílias, casa feita de pedra, aberta, arejada, banhada de verde em toda a volta, vinho tinto casualmente apoiado ao lado do livro favorito. 

Eu seria a moradora de Lisboa ou do Porto, com todos os necessários derramamentos de tempo para me enfiar num sebo velho, velhíssimo, e demorar-me no garimpo de obras de que nem os próprios autores se lembrariam. Eu seria a artista plástica contratada para murais ultracoloridos construídos com botões no mundo inteiro. Eu seria a vizinha de alguma Disney que, acordando com apetite de montanhas-russas, atravessaria a rua e passaria as doze ou quinze seguintes horas em brincadeira de não haver amanhã. Eu seria a proprietária de uma minicasa fofíssima, equipadíssima e motorizada que sairia em viagem aconchegante por regiões seguras (sim, estou excluindo o Brasil). Eu seria a humana particular de pugs e porquinhos-da-índia terrivelmente amassáveis. Eu seria a fabricante bem-sucedida de bijuterias únicas. Eu seria a residente mais amorosa de Paris, possuidora de um recantozinho como o da Celine de Antes do pôr do sol e frequentadora diária das feirinhas, padarias, livrarias, cafés. Eu seria tudo que é livre, explorador e ensolarado em mim como os rebanhos imaginários de Caeiro, o poeta sem "ambições nem desejos", mas satisfeita e igualmente "nascido a cada momento/ para a eterna novidade do mundo". 

Veja-se: eu me espalho, porém não me desfolho. Não há tristeza em não estar onde não estou, porque as adições, comparadas às subtrações, são infinitamente maiores. O que me rege é um estado de motivação tranquila que nada tem da febre dos apostadores: sob nenhuma hipótese ponho em jogo os territórios d'alma de que tenho a escritura; no máximo brinco em pescaria de quermesse, pilhando ao acaso brindes de vida alternativa que não me fazem falta, mas que só pelo inusitado da presença me fazem festa.

Nenhum comentário: