sábado, 22 de agosto de 2020

Moro num país glacial

livre jaqueta com capuz papel de parede fotos | Piqsels

Nevou, o que por si só é uma festa para os fãs, e nevou no Brasil, o que é mais uma confirmação de que 2020 não se trata de um ano para amadores. Nevar exige um alinhamento de condições e planetas que rarissimamente atingimos, mas aí está o Sul todo nevadinho para quem quiser atender ao convite da irmã de Elsa e construir seu próprio Olaf dentro de nossas fronteiras. Não fosse a pandemia, talvez eu mesma estivesse, a estas horas, devidamente apresentada a esse fenômeno fofo e branquinho; entrava em nossos planos uma primeira viagem pela América do Sul, com provável visita de pelo menos um dia a alguma estação de inverno à moda Frozen. Porém o senhor corounaváirus chegou à Terra causando – e já nos damos por felicíssimos de ter apenas leves planos de viagem transtornados. Paciência, que a neve inteira do mundo não há de derreter de um ano para o outro. Acho.

Quase toda vez que se fala de neve, me vem à memória a definição que alguém (não lembro quem) deu do cisne Grace Kelly, e que li na biografia da princesatriz anos atrás: "um vulcão coberto de gelo". Sempre me soou tão colorida e expressiva essa imagem. Um vulcão coberto de gelo. No momento em que o livro me pôs em contato com a metáfora, há coisa de duas décadas, o Brasil era bem outro; complicadíssimo, sim, mas começando a caminhar para aquela que viria a ser sua melhor versão. Hoje que moramos na pior versão de todas, que em tão pouco tempo reunimos tantos horrores, não consigo não vincular a esta terrinha o oposto da definição cunhada para representar a atriz de Alta sociedade. O que era poético se aplicado a Grace – uma beleza só aparentemente fria, e na verdade intensa, apaixonada, transbordante pelos olhos – torna-se absolutamente trágico ao ser (in)vertido para o ponto de vista brasileiro. Nunca fomos nem seremos uma beleza "fria", de divindade esculpida em mármore; ao contrário, somos tidos e decantados como calorosos, espontâneos, abracentos, festivos, e podemos nos considerar tudo isso de fato. Por baixo dessa capa vulcânica, entretanto, parece haver uma geleira inderretível, inexpugnável, inatingível, cujo ponto de fusão será talvez o mais alto de qualquer escala ainda não inventada, já que NADA consegue nos abalar o suficiente. Encarnamos, de forma continental, o meme do cachorrinho de desenho animado que permanece satisfeito e imperturbável no meio de um ambiente em chamas.

E bota ambiente em chamas nisso. Amazônia, Pantanal, tudo queima no literal e no figurado, enquanto a turma que deveria se encarregar da proteção passa boiadas figuradas e literais. As obras de nossa Cinemateca, negligenciadas, estão a um passinho do incêndio definitivo. Outros tantos museus e bibliotecas também. Reformistas seriais sapateiam diariamente em nossas cabeças, fazendo fogueirinha de direitos trabalhistas e mantendo privilégios incompreensíveis, como os militares. Jovens da periferia continuam morrendo aos borbotões, a polícia continua abrindo fogo por engano. Queimam-se vagas nos ministérios oferecendo-se os postos, em geral, àqueles com a menor capacidade possível para assumi-los. Milhões e milhões de chances são incineradas à medida que se compram EPIs indevidos, que se propagandeiam remédios inúteis, que se reiteram os maus exemplos, que se patenteia a indiferença oficial. É evidente que não sob todos (ou já teríamos virado uma Arendelle sem o ato de amor verdadeiro), mas ao menos sob uma parte alarmante desta terra se alastra essa raiz glacial de indiferença: descasos ativos e propositais de uns, congelamentos emocionais de outros. Como no reino de Elsa, do centro de governo parece lufar um vento ártico que tudo paralisa e mata – com a distinção fundamental de os fractais vindos da rainha cobrirem tudo sem sua anuência, enquanto os "e daí?", "não sou coveiro", "é só uma gripezinha" cotidianos vão regelando o país inteiro deliberada e conscientemente.

Quanto falta para que nosso calor superficial derreta essa Sibéria que domina nosso núcleo? O que será necessário para que a revolta enfim perfure a crosta de aceitação, quiçá de medo? Que escrotidão inimaginável será a temperatura de fusão que nos tirará da hipnose, e que achacamento final nos porá irreversivelmente em temperatura de ebulição? Quisera saber. Quisera ver lava borbulhando neste território de neve interna e sol decorativo. Quisera as caminhadas americanas antirracismo, a paixão dos gilets jaunes (de qualquer protesto francês, aliás), a ebulição do Chile, a Revolução dos Cravos; quisera uma bomba de consciência política explodindo nosso iceberg; quisera um 2013 mais ardente, mais experiente, mais direcionado maçaricando nossa Antártica social. Fogo nos olhos, na vontade, no peito – não mais nas matas; não mais nas armas. Fogo, fogueira, combustão de mudança, línguas de liberdade atiçando as transformações, labaredas jovens em todas as idades. O calor que deveria distinguir-nos. O "sol do novo mundo" que cantamos com a mão no lado esquerdo d'alma.

Chega de let it be, chega de let it go. O frio deve MESMO nos incomodar.

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