domingo, 16 de agosto de 2020

Mar absoluto

 Lágrimas Foto stock gratuita - Public Domain Pictures

O Brasil anda cada dia mais demasiadamente chorável, chorável num ponto de asma, de sufocação. Saber que – após mais de 107 mil lutos derivados do total descaso e mesmo da política de promoção da morte  a avaliação positiva desse "governo" chegou a aumentar dá um tal desespero nas veias, coloca um tamanho cansaço na alma, que nem há mais por onde se soluce ou transborde. O ápice da necessidade do choro costuma ser exatamente onde ele resseca: a angústia é potente demais e queda transtornada, paralisada, olhando a esmo. Ainda tem calhado de o clima inteiro andar seco, seco, seco, as matas em incêndio, o ar causticante, pesado, desértico, sem uma umidade para consolar os pulmões.

Nessas horas não é que eu procure ou dê o play na televisão, mas pensar eu penso naquelas obras que nos arrancam à força dessa automação idiota – aquela arte nossa de cada dia, que consegue promover a catarse congelada pelo mundo real. Outro dia mesmo esbarrei com umas cenas de E.T., um dos desidratadores mais clássicos da história; não fiquei assistindo, porque já sabia no que iria dar, porém o simples contato de poucos minutos com a obra-prima de Spielberg já é suficiente para desempedernir a criatura mais talhada em mármore: a doçura gigante dos olhos gigantes do personagem-título, a infância e a amizade em estado de pureza bruta, o voo de bicicleta embalado pela lua e pelos acordes que todos conhecemos (se há imagem mais representativa do cinema, desconheço), a declaração de Elliott para o amigo que abre todas as nossas comportas e evoca todas as dores de todas as perdas. Coisa de ensopar um lençol. Outro que vi em criança e – pelo menos na época – me desandou em lágrimas foi Meu primeiro amor, aliás em situação bem parecida, já que também se trata de um pequeno coração confuso, solitário, que tanto se aproxima quanto precisa se despedir de outro ao qual se confiou. Lembro que a sala inteira terminou a sessão soluçando que era um desespero. 

Duvido, por sinal, que qualquer sapiens sem características de psicopatia não tenha se derramado igualmente no final de Marley e eu e (o que eu acho o "pior" de todos) Toy story 3 – em ambos os casos, não por um sofrimento inerente ao estado de desproteção emocional da infância, mas sim pela dor do fim de um processo, do fim de uma fase quando já se está na idade adulta ou caminhando para ela. De Toy story 3 eu cheguei mesmo a escrever na época (anteriormente ao nascimento do blog que vos fala), e recordo bem que fazer o texto foi tão choroso como assistir ao filme, no qual eu basicamente não podia pensar. Ainda hoje não conheço obra melhor para, havendo necessidade premente de desentupimento emocional, promover um expurgo. 

Mas as produções que considero mais amplas, mais interessantes em âmbito lacrimogêneo são Divertida mente e Viva – a vida é uma festa. Enquanto todas as demais citadas abordam de algum modo as despedidas, as perdas, as mudanças de fase, Divertida mente e Viva abordam as mudanças de fase sem que perdas e despedidas se concentrem num determinado ser; e, até ao contrário, sem que essas perdas não impliquem reconexões. O pulo do gato (ou do rato?) das duas animações é justamente complexificar nosso choro, uma vez que – tal qual na bolinha de memória acridoce de Riley, protagonista do primeiro desenho – o sentimento é multicor; o adeus a algo vem misturado com uniões novas, com resgates emocionais, com abraços mais apertados, com a ampliação de possibilidades. Duas das obras cinematográficas mais profundamente tocantes sem serem precisamente tristes: joias da psicologia humana, infantis apenas na aparência e na forma. 

Se estiver então precisando de uma ajudinha para abrir os diques, ficam as dicas. O país nos deixa sem humores – mas a ficção é plena de fontes bebíveis para nos dar águas que se desafoguem, antes que nos afoguemos em nós.

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