quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Superpoderosos

 Criança Menina Pai - Foto gratuita no Pixabay

Um dos temas do mais recente Papo de segunda foi a influência dos pais na construção da autoestima dos filhos. Conversa riquíssima, como sempre. Em meio às discussões sobre o efeito dos elogios frequentes aos pequenos, tocou-me bastante o relato de Chico Bosco a respeito de sua filha Iolanda, de oito anos. Segundo Bosco, desde que nasceu a menina foi constantemente coberta de palavras positivas, adjetivos felizes, você é linda, você é incrível, você é maravilhosa, coisa e tal – o que costumamos naturalmente dizer quando amamos uma criança e desejamos que ela cresça sabendo que pode ser tudo que quiser. O problema é que essa dieta de fortalecimento do eu, embora administrada com as intenções mais louváveis, começou a gerar sequelas imprevistíssimas: provavelmente se sentindo pressionada pela imagem 10/10 que sentia ter entre os familiares, Iolanda passou a demonstrar medo de tentar coisas novas, de arriscar-se portanto a errar; pareceu como que assombrada pelo fantasma da perfeição obrigatória. Agora a família vem procurando fazer o caminho inverso – não no sentido de diminuí-la, obviamente, mas no de deixá-la confortável o suficiente para saber que PODE errar, que ninguém vai parar de apoiá-la, que ela não vai decepcionar os pais nem tem a menor necessidade de ser perfeita em todos os momentos. Enfim: haja minúcia e olho clínico para equilibrar essa balança delicadíssima de fazer alguém sentir-se amado, porém não idolatrado; admirado, porém não pressionado. E para cada psiquê há uma fórmula, ou seja, tentativa e erro na veia. 

Não tenho filhos e fico desesperada só de pensar em conviver com esse dilema: como tornar uma pessoinha segura sem ser narcisista, autoconfiante sem ser arrogante, dedicada sem ser neurótica, prudente sem ser medrosa, curiosa sem ser inconsequente, solícita sem ser carente, generosa sem ser ingênua? O garantido é que eu acabaria morando numa slackline, simultaneamente criando olheiras na madrugada, a bolar estratégias, e dizendo a mim mesma que deu certo com meus pais sem graaaandes estratégias, e eu deveria confiar no processo. Quero crer que todas as minhas forças tenderiam a se concentrar no que já comentei aqui há alguns textos: desenvolver a empatia na criaturinha que houvesse parido. Entendo pouquíssimo, realmente pouquíssimo de pedagogia em seus aspectos teóricos, mas acredito (não sei se com razão ou pelo comodismo de escolher um foco supremo – ou ambos) que direcionar todos os esforços para a lógica da empatia poderia escorrer para bons efeitos colaterais. Sei, é preciso inicialmente constituir um eu para que esse eu possa se espelhar em outro; sem dúvida. Porém, na falta de outras ideias, eu tentaria engordá-los juntos – o eu pessoal e o espelhado. Faria o possível e o impossível para plantar no filhotinho de Deus a convicção de que todos ganhamos uma montanha de predicados com um único objetivo, que é o de fazer feliz a maior quantidade de sujeitos. 

A ideia certamente não é minha; estou apenas pondo em outras palavras uma das materializações mais lindas que já vi desse sistema de educação. Há poucos dias, passou por mim um vídeo extremamente comovente em que Marcos Mion fala sobre a vivência com seu filho Romeu, que é autista. Além de Romeu, o apresentador tem um casal de filhos menores, que certa vez questionaram o pai: por que o mais velho pode deitar para dormir usando o tablet (ou smartphone, não lembro) e nós não? Marcos explicou-lhes pacientemente que os videozinhos ajudavam o cérebro do menino a focar e relaxar para conseguir pegar no sono, e aproveitou para dar às crianças uma primeira e mais significativa aula sobre o autismo. Sabem quando o Romeu fica um tempão dentro da água gelada sem sentir frio, e ninguém mais consegue? sabem quando ele permanece horas observando as árvores, sentindo o vento? – perguntou. Os pequenos disseram que sim. Pois é, continuou o pai; é que ele nasceu com superpoderes, ele é capaz de suportar o frio, de entender a linguagem das árvores etc.; só que isso tudo veio com algumas dificuldades também. Então o menorzinho se indignou, ligeiramente magoado: puxa, pai, mas por que você passou superpoderes só para ele? Com doçura e habilidade, Mion esclareceu que eles todos também os possuíam, mas que os superpoderes deles eram diferentes, já que tinham recebido a missão de proteger Romeu, de cuidar dele, de facilitar o mundo para ele. Nem preciso dizer que chorei horrores com o relato e com a sensibilidade de Marcos Mion para abordar a questão de maneira tão acessível quanto fiel. Porque é isto, é exatamente isto, independentemente de nossos irmãos (lato sensu) exigirem ou não cuidados especiais: nossos superpoderes são incríveis na exata medida em que suplementam as fraquezas dos outros. Nada além disso nos justifica.

E talvez nada nos construa melhor do que acordar todos os dias para salvar um mundo.

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