quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Por motivo do ermo

 outono, criança, infância, menina, sai, natureza, Toque | Pikist

"Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. [...] Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. [...] Cresci brincando no chão, entre formigas. [...] Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas."

Tudo acima é Manoel de Barros, mas cá no peito podia ser eu, que por motivo do ermo também não fui menina peralta. Também fazia solidão, também cresci brincando entre formigas. Nunca fui exterior, sou assim oblíqua e enviesada ("dissimulada" tem excessivo peso) mais que Capitu jamais terá sido – porque ela levava o tempo entre jogos e segredos com seu parceiro de meninice, e eu rarissimamente comungava com gente, embora talvez quisesse. Não era antipática nem deixava de ter amigos; tinha-os, era dócil ao relacionamento, muito aberta inclusive para acolher novos colegas; apenas não cheguei nem creio que pudesse chegar (mesmo hoje) à intimidade mais incondicional, ao alegre abandono de escancarar o coração e partilhar festa do pijama. Meu ermo dentro do olho deve sempre ter-se anunciado loud and clear: pareço estar presente, porém não. Não de todo. Me deixem não fazer peraltagem, me deixem estar momentos afastada brincando entre folhas e pedras e formigas, em meu posto de cismadora, ensimesmadora e observadora oblíqua. 

Sim, é possivelmente um efeito do ermo: ser eterna observadora. Não nasci para as competições, os queimados, os vôleis, as amizades chicletosas, as brincadeiras de pogobol e elástico, as Barbies, os namoros de escola (muito adiantados para minha infância), as baladas, os barezinhos, as praias de domingo, tudo que é criancice ou adolescice muito exposta, muito coletiva. Apesar de carioca de berço, de criação e da gema, sou do interior – do interior de mim. Me habitei sempre demasiadamente, o resto era para cumprir tabela. Não tive culpa de me materializar numa cidade assim ostentosa, assim solar de todas as maneiras possíveis, que quase cobra da gente uma rotina bronzeada; lamento, mas não posso arcar com a cultura de eterno verão que me é misteriosa, que não escolhi e não me diz respeito. Verão é um bicho derramado, com alma de time, de grupo, de plateia, e meus verões amados pedem mais recolhimento e mais sombra. Só quero que me permitam ser a carioca não praticante que analisa sossegadamente da margem; que talvez esteja mais interessada no pássaro e sua árvore do que no assunto debatido à mesa; que prefere qualquer sebo solitário a qualquer peraltagem na Lapa ou no Arpoador; que comunga da vida geral com ternura e empatia, porém sem proatividade. Meu ermo dentro do olho, minha estrada voltada pra dentro, tem chão que não acaba mais, tem espaço aéreo pra mais de metro; devo conviver com a tarefa de pelo menos tentar manter férteis essas lonjuras que habito. 

Lá onde se espalham minhas raízes crianceiras, é preciso arar vivamente para acordar a terra de seu repouso, mas é também com alegria que rebenta cada semente enviada em missão.

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