domingo, 9 de agosto de 2020

Até onde

 Pintura Desenhar Cor - Foto gratuita no Pixabay

Não sou pintora, mas compreendo ou imagino compreender o que queria dizer Delacroix ao afirmar que "há duas coisas que a experiência deve ensinar: a primeira é que é preciso corrigir muita coisa; a segunda é que não se deve corrigir demais". Compreendo e, ao mesmo tempo, fico afogada até as sobrancelhas no excessivo conteúdo dessa frase, que abraça em tão poucas palavras todo tipo de trabalho artístico, de trabalho intelectual, de trabalho humano. Aperfeiçoar é um destino, mas não pode ser doença; é uma condição para os sucessos e facilmente pode derivar nas loucuras. Existe um equilíbrio fino entre a vida e a morte, entre a persistência e o fanatismo, e achar com precisão o ponto de virada é a pedrinha filosofal de nossa espécie toda. Nossa espécie genial, maluca e descompensada toda.

Um filho: nunca está pronto, já que se trata de um elemento dessa espécie – e nós humanos, poços sem fundo, só acabamos de nos construir na morte, mesmo assim por falta de opção. Até onde, então, vai a delicadíssima embaixada de orientar, tolher e corrigir a criatura; a partir de onde se dá o sufocamento e a ingerência por parte de pais dominadores, de Big Brothers que tudo vigiam? Não quisera eu, confesso, estar na pele dos tutores de pequenos sapiens, por ficar já imaginariamente agoniada com o dilema. Em minha condição de não-mãe, sou das menos indicadas para apontar a fronteira, a divisa, porém consigo fazer uma projeção teórica: provavelmente eu me doaria em corpo e alma a incutir no piá o senso do bem comum; priorizaria vorazmente a noção do coletivo, do outro, da vez do outro, da felicidade do outro (com doçura, lógico, que quando a lição é feroz acaba dando no contrário). Fosse isso entendido como uma segunda natureza, creio que me daria por aliviada e tudo que viesse seria lucro. A bondade autêntica, num filho, haveria de ser um sorriso de Mona Lisa em meu quadro: basta-se.

Uma tela, um prato, uma canção, uma escultura – até qual borda de abismo ir, onde parar? Quando se resolve? Quando se encerra? Que critérios decidem se os sentidos estão satisfeitos ou exaustos? Se eu soubesse não estaria aqui decerto, mandaria acenos de uma cobertura em Paris, RYKAH e pleníssima. Mas desconfiar é sempre permitido, e eu desconfio que, como num ato de amor, após o máximo foco e a máxima entrega àquela obra o corpo simplesmente faz o resto – e sabe. O artista apenas sabe, com suas adrenalinas e intuições, que fez o possível; o artista sabe se esteve ali cem por cento; o artista sabe quando não lhe cabe prosseguir, sabe se nele não há nada além, nenhum último recurso de gesto, cor, tempero, acorde. Ainda que não seja sua obra-prima, ainda que a perfeição não seja artigo barato e acessível, foi perfeito dentro das condições dadas. Para além de uma linha, o artista não mais sente, não nota, não percebe; transferiu-se todo, downloadeou-se inteiro; como os outros vão julgar o feito já é coisa que foge à sua jurisdição. Nesse instante, nada resta do artista que não precise ficar para a próxima. 

Um texto: levar até onde? Até o primeiro latejar da cabeça e o derradeiro da ideia. Ter prazo – interna ou externamente imposto – ajuda muito, muitíssimo a inviabilizar o perfeccionismo, o vaivém de frases e termos, a dança de cortes e sinônimos. A demorada toalete do texto vai até a décima segunda badalada: caso encerrado. Entre todos os criadores de tudo, o escritor é talvez o que mais chances tem de aboborar-se na insanidade e trancar-se na torre pelos séculos dos séculos, se não o expulsarem solenemente do feitiço. Consta inclusive em lenda, concebida por mim agora, que relógios só foram inventados para servir de álibi aos (e impedir o assassinato dos) editores que precisavam ir até os romancistas para arrancar-lhes a última folhinha de papel. 

Por sinal, já bateram doze; fim de valsa. Um brinde à minha e à vossa libertação.

Nenhum comentário: