domingo, 2 de agosto de 2020

Nós


Temos esbarrado de vez em quando, no Multishow, com o curioso reality Se sobreviver, case! – uma espécie de Largados e pelados em que quatro casais ficam, hum, largados e pelados na mata, sobrevivendo com o mínimo do mínimo, cada dupla em seu acampamentozinho improvisado com galhos e folhas. Não vi o suficiente para entender as regras, mas sei que volta e meia um elemento do casal é enviado para fazer escambo de produtos no acampamento de outro, e há uns dois ou três dias a produção arranjou os intercâmbios para que as quatro mulheres passassem a noite juntas em uma das barracas, enquanto os quatro homens permaneciam juntos numa segunda. A diferença de aproximações foi meio engraçada, meio comovente de ver. Dois dos rapazes seguiram ao mesmo tempo para o abrigo de seu "anfitrião", que estava ciente da vinda de hóspedes, porém não sabia quem eram; ao se dar conta de que eram outros homens, recebeu-os obviamente bem, mas em off manifestou seu desapontamento: esperava que chegassem mulheres, e não dois marmanjos "com a chibata balançando" (naturalmente choramos de rir com seu desabafo nu e cru – e bota nu nisso). Os cumprimentos foram amigáveis sem ser efusivos; um meio-abraço aqui, uns tapinhas ali, cordial camaradagem e só. Quando o quarto integrante masculino finalmente chegou ao clube, algum dos boys deixou mesmo escapar um discreto "ai, meu Deus". Todos se deram bem e trocaram confidências a respeito de seus relacionamentos, mas a linguagem corporal não desmentia a certa desconfiança física: os homens, enquanto podem evitá-lo, evitam indisfarçavelmente o toque, e não consigo não pensar que o pavor de a proximidade ser confundida com atração sexual acaba se sobrepondo a qualquer necessidade de afeto e calor (calor literal, já que os participantes batem queixo durante a madrugada, mesmo com a fogueira acesa).

No acampamento que se tornou então o das mulheres, por outro lado, parecia a festa do pijama – sem a participação do pijama. A "anfitriã" ficou totalmente deslumbrada ao ver chegar a primeira hóspede, abraçou, beijou, depois veio outra, veio mais outra, e as meninas celebravam com evidente alívio e gritinhos felizes cada entrada triunfal. Falaram abertamente sobre sua alegria de estar com outras mulheres, declararam que sentiam muita falta desse convívio, deram abraço coletivo e pouco faltou para que saíssem dançando misticamente ao redor do fogo, num sabbat de sororidade. Não dançaram, mas a energia e a afetividade ali estavam, parece que nascidas de um relance, num movimento espontâneo e lindo. Honestamente: quem viu as cenas das moças e dos moços e ainda assim teima no esfarelado e velhíssimo "aaain, as mulheres não são amigas" precisa de psicanálise online, urgente, pra exorcizar esse fantasma das balelas passadas. 

Sim, as mulheres são amigas, e mais que isso: mulheres são irmãs de perrengue e soldados da mesma guerra. Claro que há exceções, sempre as há, e mesmo assim o mais provável é que a mulher avessa a mulheres seja ainda prisioneira de uma Síndrome de Estocolmo longamente incutida; o mais provável é que a sujeita nunca tenha podido se dar conta de que está mais para objeta, de que é uma Lulu historicamente ensinada a renegar-se em nome do "privilégio" de se adequar ao clube do Bolinha. Existem essas reféns, óbvio, uma vez que o machismo estrutural permanece forte demais para ter deixado de sequestrar mentalidades. A consciência desse exato machismo, no entanto – ou ao menos a intuição de seus efeitos –, muito mais constante e naturalmente nos une, nos irmana, nos torna parceiras e cúmplices. Só nós podemos empatizar plena ou suficientemente com os pudores, os constrangimentos, os pânicos, as cólicas, as encucações, as vulnerabilidades físicas e emocionais umas das outras. Mesmo quando nosso amor da vida é um homem, e quando ele ocupa também o posto de melhor amigo, há medos sociais, há nuances e hormonices que somente outra garota partilha à altura, por tê-los experimentado sem às vezes sequer se ter dado ao trabalho de comentá-los. O rapaz mais esclarecido e atento nem sempre se toca de que o caminho que ele segue sozinho, à noite (ou nem à noite), não pode ser o nosso; de que ele não deve nos empurrar para certos pontos ventilados da calçada quando estamos de saia; de que é absurdamente exaustivo andar na rua mapeando olhares como um radar; de que um sabor que hoje nos apetece pode ser repulsivo amanhã, por simples variação de uma taxa qualquer no sangue. As menores das menores das menores experiências de convívio são brutalmente distintas, sem que possamos ilustrá-las – daí o extremo alívio de poder transmitir sem esforço, sem palavras, sem justificativas essas miúdas e grandes agruras.

Nenhum moçoilo entenderá, a não ser em tese, a libertação de viajar num vagão feminino, de contar com uma motorista de táxi ou uber, de perceber que há outras meninas por perto no metrô vazio e noturno, de constatar que os passos vizinhos na rua são de mulher. Embora tenham procurado durante séculos – milênios? – dividir-nos para conquistar-nos, plantando desde priscas eras a ideia de que apenas homens (ou seja: pais, irmãos, maridos, tutores) eram leais e objetivos o bastante para nos amar e guiar, esqueceram-se de "convencer" a sabedoria instintiva de nossos corpos, que se acalmam junto àqueles que não são percebidos como invasão e ameaça. Independentemente de qualquer amor sentido por qualquer homem – e sem excluí-lo, é lógico –, não podemos evitar nos reconhecer seguras e acolhidas entre nós, nos ver mais relaxadas, mais desarmadas em meio a seres corporalmente "desarmados". É tristíssimo constatar o quanto a história da dominação masculina nos legou de medo, desilusão, trauma ou simples desconforto, porém existe a face do processo que não deixa de ser bela, aquela materializada em poucos frames no programa citado: mulheres, já fortes em si mesmas, são ainda mais fortes e luminosas ao se encontrarem, apoiarem e protegerem. Sozinhas, são uma potência da natureza; juntas, uma energia de tufão, de ressaca, de relâmpago, de tempestade. Sozinhas são uma labareda; juntas, uma usina. 

Amadas, não aceitemos separações entre nós: braços que não hesitam ante a entrega do abraço são o futuro do mundo. E meninas são – serão sempre –, umas para as outras, as trincheiras mais superpoderosas.

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