domingo, 23 de agosto de 2020

Formigueiros

 África, Formigueiro Gigante, Incomum, Reino Unido
Diz que, no fim da década de 1990, a executiva americana Joan Murray decidiu arriscar um salto em queda livre a 4,5 mil metros de altura; só que o paraquedas principal não abriu, e o reserva não o fez direitinhamente, já que a saltadora estava muito perto do chão e se debateu em pânico. Mas Joan não morreu – e arrumou a maneira mais inusitada de não morrer: aterrissando (involuntariamente, é claro) sobre a morada de cerca de 250 mil formigas-lava-pés naaaada simpáticas à destruição de sua casinha. É verdade que, além de ter ferido seriamente a parte direita do corpo, a americana já havia levado mais de duzentas picadas quando os socorristas chegaram, o que seria fatal se ela fosse alérgica aos insetos. Felizmente não era, e o ataque – que podia ter causado a morte que a queda não causou – acabou sendo exatamente a salvação da paraquedista, uma vez que provocou uma tal descarga de adrenalina que estimulou o coração e os demais órgãos a continuarem trabalhando. Joan ficou um par de semanas em coma, recuperou-se e até voltou ao paraquedismo dois anos depois. 

Longe de mim posar aqui de animadora de velório; tenho horror àqueles jatos de positividade tóxica borrifados desempaticamente na cara de quem está sofrendo, como se fosse possível, por exemplo, que alguém conseguisse enxergar vantagem numa doença, morte, perda em geral, especialmente nos primeiros momentos após essa perda. É cruel e ridículo. Não há "lado positivo" no meio da dor, assim como para Murray não havia chance de consolo ou celebração enquanto as lava-pés furibundas a devoravam viva. PORÉM a vida acontece, o enredo se desenrola com vários requintes independentes de nós, e a posteriori, depois do maior sofrimento e do coma emocional, estamos finalmente em estado de constatação: não foi bom, mas algo bom nasceu dos escombros. Não é que qualquer consequência favorável justifique o ocorrido e anule as péssimas lembranças, ou desautorize o luto vivido. Não anula; não desautoriza. Mas bem pode acontecer que ressignifique, que redimensione – que a continuação da narrativa enfim amarre as pontas e se consiga chegar a alguma espécie de paz.

Lembro-me de situação recente em que, tal qual no caso da paraquedista, algo em si mesmo terrível foi incrivelmente redimensionado pelo contexto: quando um paciente soropositivo desenvolveu leucemia e, após receber um transplante de medula destinado à cura desta última, acabou ficando também livre do HIV e se tornando uma das primeiras pessoas a eliminar totalmente o vírus. A leucemia foi, para o paciente em questão, o que as formigas insanas foram para Joan Murray: um acontecimento funesto que, por vias tortíssimas, levou ao conserto de outro. Reitero que casos tais não nos forçam a bendizer coisas ruins, mas ao menos segredam o recado de que, quando as nuvens se dissolverem, podemos vir a nos surpreender com alternativas antes invisíveis; podemos esbarrar com um caminho que se redesenhou despercebido, às vezes interiormente mesmo, ao sermos empurrados de uma perda para uma nova coragem. Há alguns dias escrevi sobre o quanto é debochado e perverso falar em "reinvenção" pessoal nesta era de crise, como se ainda se jogasse uma roupinha de fada ou unicórnio sobre o desespero da sobrevivência; entretanto, se é maquiavélico forçar a barra da recuperação com papinho coach, muito diferente é estar aberto a reconhecer o que foi encaminhado pelas circunstâncias e, simultaneamente, não desrespeitar a história escrita nem o sofrimento envolvido.

O ideal seria nunca, jamais passarmos pela queda ou pelo formigueiro – mas, na eventualidade de passarmos, é fundamental capturarmos toda serenidade que estiver ao alcance, nos agarrarmos a quaisquer exemplos que nos forneçam conforto, a quaisquer memórias (como a da paraquedista americana e a do paciente anônimo) que sirvam de precedente e boia. É, sim, um exercício de confiança quase cega num futuro que talvez só compreendamos quando há muito for passado; é um caminhar no nevoeiro, tateante; porém o coração precisa continuar batendo, mesmo na aflição, até por causa dela. Não pode parar, não agora. Certamente não parecerá assim, mas, havendo queda, é de fato melhor perceber a dor do formigueiro do que ser incapaz de percebê-la; dói porque estamos vivos, porque o sangue corre, porque o pulso pulsa, porque a alma reage, porque o que somos não quer se entregar a ser destruído. O que tem de ser, dizem, tem muita força – e eu diria diferentemente: o que somos tem muito mais força para transformar o que foi em tudo que será ainda.

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