quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Brinquedo de fazer ver

 Câmera, câmera digital, câmera dslr, grapher, grafia, mãos ...

Se não me faltasse a energia dos estudos contínuos, certamente a fotografia e a psicologia estariam em meu radar, e por motivos parecidos – talvez os mesmos que me levam a ser bicho de literatura: a curiosidade do instante, a captura do olhar humano, o amor por histórias. Mas me falta a energia dos estudos contínuos; não vejo modo de (hoje, ao menos) acrescentar caminhos profissionais aos já conhecidos, e, como já conhecidos, acolchoados. Deixo a foto e a psico agendadas para o quem-sabe-um-dia. Porém não deixo de registrar minha ternura pelas duas mocinhas, entre as quais uma está de aniversário: 19 de agosto é o Dia Mundial da Fotografia. A data marca a apresentação oficial (em 1839, na França) do daguerreótipo, primeiro processo fotográfico comercializável neste vasto mundo – nada mais coerente, aliás, que nascesse francês esse pequeno louvor à beleza, mesmo à beleza terrível das coisas tristes. 

É da superfotógrafa americana Dorothea Lange, que documentou impressionantemente o período da Grande Depressão, uma das frases mais intensas e caudalosas sobre essa arte: "A câmera é um instrumento que ensina a gente a ver sem câmera". Me admira que todos os profissionais do ramo não tatuem uma tal definição no braço, na perna, no peito, de pura lindeza. Infelizmente não sou fotógrafa, mas de fato desconfio que não haja melhor resumo; a câmera existe para educar os olhos, para acostumá-los a saber que estão acostumados demais ao trivial, para chocá-los com a revelação do quanto não veem, para ajudá-los a assustar-se de novo. A câmera existe para nos jogar na cara tudo que já estava lá sem a moldura, todos os olhares que já eram profundos e intrigantes antes de serem flagrados, todas as joaninhas e demais criaturas de fada que já existiam antes de serem ampliadas, todas as paisagens que já se entregavam amorosamente a nós antes de serem apreendidas. Claro, não são os mesmos olhares, paisagens e joaninhas os que vivem fora da câmera e os que vivem dentro dela; a tecnologia e (principalmente) a perícia do fotógrafo modificam, recolorem, reiluminam, enquadram, selecionam, transformam o objeto de além da lente, e a obra final nunca será o modelo que enxergamos. Porém a câmera não pretende nos fazer prever obras, e sim nos apontar possibilidades, à moda saramaguiana: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". 

Repara: há potencial colorido e geométrico no vagão de metrô; há uma beleza estranha desenhada pelos veios da madeira da porta; há uma luz dois minutos mais interessante e outra cinco horas mais misteriosa; há poesia de malha rodoviária nos sulcos de um rosto, ou poesia de artérias na malha rodoviária; há soturnidade ou aconchego se são trabalhados em p&b ou em vermelho os tijolinhos de uma casa; há uma doçura de rasgar corações na florzita microscópica que brota (sozinha como enfeite) nos rejuntes de um túmulo; há contradições entre olhares e sorrisos que se tornam mais visíveis quando congeladas; há um reconforto de fome saciada nos escritos de giz à porta dos bares; há romantismo de século XIX em curvas de prédios que sempre pertenceram à rotina; há oceanos de dores impercebidas na expressão de mães, pais, médicos, professores; há sombras que, em determinado horário, brincam de sacanear seus sombreadores; há ângulos de luar que só se revelam para quem os espera às três da manhã na cozinha; há dedicatórias manuscritas que ficam mais lancinantes se a luz sublinha a força com que a caneta se declarou ao papel. Há variedades, inumeridades de pistas que levam ao fantástico, piscadas que são um flerte do mundo com o fabuloso, e que nossa pressa, nossa desatenção, nossa (des)acuidade visual atropelam – mas que as câmeras gritam, como boas detetives e boas desbravadoras.

Repara: câmeras são o luminol que denuncia de onde escorre o sangue da terra. São a placa de direção que nos avisa o que esperar do adiante. São o mensageiro dos ventos que dança ao ser beijiscado pela alma do quanto existe. São o faro que caça qualquer mínima abertura de portal.

2 comentários:

Celso Trancoso Clemente disse...

Delícia de texto Fernanda, daqueles para saborear lentamente. Me identifiquei logo com a "curiosida do instante e amor por histórias.
Fico de plantão , esperando o próximo texto-reflexão para saborear.

Fernanda Duarte disse...

Obrigadíssima pelo carinho de sempre, querido, querido Celso! É uma honra tê-lo aqui! 😘😘😘