segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Os normais

 esgotamento, cláusula, inundar, fluxo, dor de cabeça, lei, lacunas ...

Sei que não sou só eu, porque vários amigos já manifestaram sua exasperação com as expressões que têm dado mais que chuchu na serra: "reinventar-se" e "novo normal". Tudo bem que os tempos são de readaptação e de alguma necessária resignação às contingências, mas não é motivo para a gente, exausto, se encostar no clichê e andar tão agarrado a essas almofadas linguísticas que chegam a virar mantras ou panaceias. São termos de potencial até poético que, no entanto, acabam romerobrittizados de tanta repetição, de tanta exposição, de tanta amofinação na mídia, no home office, no Face, no barzinho (embora NÃO DEVA haver barzinho no momento, mas foi metonímia, vocês entenderam). Sacam o processo de romerobrittização? A coisa começa legal, puxa, que diferente – e de repente a coisa se espalha, a coisa domina o mundo, e martela e sufoca a ponto de não se poder mais ouvi-la/vê-la sem crises de irritação e cafonice diabética. 

Cecília dizia que a vida, a vida, a vida só é possível reinventada, e tinha toda a razão, óbvio. Tinha toda a razão porque nem de leve queria impor a ideia de sermos forçados, vergados pela realidade em nome de uma sobrevivência mínima; pelo contrário: de sua altura de poeta, sabia o quanto é fundamental que a ficção (a arte em geral) nos resgate da realidade e a torne cabível, praticável, respirável. Só que não é dessa reinvenção com altos níveis de sustentabilidade emocional que nosso amiguinho clichê anda falando, mas sim daqueloutra, a que nos força e verga. Para o sistema no qual vivemos e do qual somos reféns, nós, os reféns e peões já normalmente vampirizados, é que devemos nos retorcer inteiros a fim de continuar o fornecimento de sangue a nossos senhores – que, coitadinhos, não podem se mexer muito para nos facilitar o serviço, sob pena de abrirem falência e se dissolverem no ar. Nós que nos viremos para amamentá-los; nós que mudemos de ramo para nos recuperar da demissão; nós que administremos as demandas dos filhos enquanto nos equilibramos nas nossas; nós que nos curvemos a plataformas educativas de grandes empresas, às vezes não muito fáceis de manejar e ainda mais dificultadas pela internet porca fornecida por outras grandes empresas; nós que vendamos o carro e encaremos o ônibus abarrotadíssímo, mais abarrotadíssimo ainda com o misterioso sumiço de várias linhas; nós que compremos do nosso bolsinho todos os apetrechos para incrementar as lives do trabalho; nós que paguemos do nosso bolsinho a luz, a água, a internet gastas durante o expediente remoto, quando outrora o chefe as pagava no expediente presencial. Eis aí: reinventar-se. Esse jeito escroque de romantizar o esgotamento de tantos, de gourmetizar a insônia e a dor de cabeça de quem não tem alternativas para garantir o almoço e o aluguel. Realmente lamentável que ainda não tenhamos conseguido nos reinventar o suficiente para proceder à fotossíntese – mas quem sabe um decreto do governo não nos dê essa oportunidade um dia?

Novo normal: outra maneira meio cinicamente dramática, meio cinicamente fofinha de assegurar que sim, vamos continuar aceitando nos reinventar regularmente. Primeiro nos reinventamos, depois nos novo-normalizamos. Excesso de desemprego? uso de cartão de crédito quase compulsório? invasão do trabalho à privacidade, do profissional ao doméstico? É assim mesmo, é o novo normal. Chegue cá, vou falar no canto do ouvido: novo normal é uma PITOMBA. Em primeiro lugar, não é porque uma coisa é comum que ela se torna necessariamente normal; assaltos, por exemplo, são comuns até demais aqui na terrinha do Rio de Janeiro, porém vamos combinar que normais não são. Algo negativo para nossa vivência nunca pode vir a ser considerado normal. Vá que seja uma contingência, um aborrecimento temporário, um contratempo, um incidente, um desvio de rota, mas não se fale aqui de normalidade. Como se pode conceber "normalidade" em meio a uma pandemia que acontece de século em século, Jesus amado? Em segundo lugar, as coisas realmente corretas que temos aprendido a fazer – tirar os sapatos ao entrar em casa, lavar as mãos minuciosamente, não levá-las ao nariz/olho/boca sem as desinfetarmos, não espirrar/tossir/falar em cima de objetos de uso público ou pessoas –, sabem essas coisinhas? Pois é, já deveríamos fazê-las há muito tempo, o que as configura simplesmente como normais. São normais por serem higiênicas e recomendáveis sempre, não somente agora. Temos, em suma, dois grupos básicos de situações: as desagradabilidades que a pandemia trouxe e, esperamos, irão embora junto com ela (reforce-se que chatices como o isolamento social SÓ PODEM ir embora junto com ela e após a imunização geral, já que todas as tentativas de flexibilização da quarentena só facilitaram o espalhamento do vírus maldito; paciência, gente!) e as necessidades em que a pandemia lançou holofotes, mas que na verdade sempre existiram. Temos as contingências e temos o normal. O normal, só. Ou o que deveria sê-lo.

Por enquanto fazemos o possível, o possível INTEIRO, tudão que nos cabe e sem desculpas: usamos máscara em qualquer interação com alguém que não more conosco – e às vezes com alguém que more, se houver grupo de risco envolvido –, mantemo-nos guardadinhos em casa o máááááximo de tempo, adaptamos o serviço a nossas capacidades emocionais e tecnológicas, procuramos atividades físicas que não peçam academia nem ar livre. Sim, faço tudo isso e continuarei fazendo, não sendo mais que minha obrigação. Apenas não me venham com reinvenções pintadas de unicórnio, esses termos de coach que são um escárnio, um deboche sapateando sobre o estresse e o desespero de muitos. A vida, a vida, a vida precisa ser reinventada sim, mas com alívio, leveza, repouso, amor e arte; nós, os reféns, não precisamos de mais camadas de capitalismo pesando nos ombros, além das que já temos para dar conta.

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