quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Harmonizadores de gente

Banco de imagens : mulher, textura, chão, janela, vidro, parede ...

Hoje, 27, é no Brasil o dia desse herói do destrinchamento humano, desse domador de fantasmas cerebrais, desse síndico de raves internas, desse assistente de sanidade, desse Mestre dos Magos que aclara a Caverna sem sumir inconvenientemente no processo: o psicólogo. Nunca cheguei a frequentar um – certamente não por falta de necessidade; sou do princípio, aliás, de que não há serumaninho com falta de necessidade –, porém olho com total fascínio para os fazeres desses profissionais, que aprendem e identificam tanto as constantes no comportamento da espécie quanto as individualidades mais impensadas. Olho com tamanho fascínio que chego a imaginar: se não tivesse cursado Letras (carreira de que jamais me arrependi, e que eu seguiria e resseguiria em todos os universos paralelos, sendo mesmo o caminho mais à minha feição), não descarto a possibilidade de ter-me enfiado no andar de Psicologia. Inclusive não descarto a de vir a me enfiar ainda, sabe-se lá? Ainda que não seja dada ao acadêmico, aprendi com este 2020 nevado, pandêmico e gafanhôtico que quase tudo pode ser, que planos e desplanos se dissolvem numa piscada e que nossas estradas profissionais também podem acordar em modo freestyle.

Mas não é sobre mim, é sobre eles: os corajosos que um dia se segredam "vou tentar desenredar essa mixórdia que vive em todas as cabeças", e se atiram no que talvez haja de mais abismante, na casa mais mal-assombrada, no oceano mais bestial, na altura mais rarefeita, no vulcão mais cáustico. Se atiram na anatomia do que manda na anatomia, na dissecação do que controla tudo a ser dissecado – e duvido que exista EPI suficiente para deter um décimo dessas emanações tóxicas. Estudando a bagaça toda do que é humano, psicólogos estudam necessariamente o que é extremo, e precisam compreender sem vômito a mente dos psicopatas, a insanidade das mais absurdas parafilias, o efeito dominó das várias manifestações do egoísmo, o total pavor ou o total esvaziamento dos olhos já submetidos a uma coleção de horrores. Não é preciso que o atendimento clínico seja feito nos corredores da morte americanos para que o estômago tenha de virar em Megazord. Onde quer que trabalhem, psicólogos lidam com camadas de dor recebida e provocada: adolescentes com a autoestima no pé, vítimas e praticantes de bullying, crianças que mal sabem expressar os abusos sofridos, filhos dilacerados porque sua orientação sexual não é acolhida pela família, pais dilacerados porque o casamento está insustentável, pré-universitários dilacerados entre seus sonhos de carreira e os de seu clã, mulheres que lutam para desvencilhar-se de relações abusivas, pessoas deprimidas, suicidas, automutiladas, ansiosas, solitárias, desamadas, negligenciadas de todas as maneiras possíveis. E claro: pacientes psicólogos que se consultam com outros psicólogos, porque não me parece seja viável encarar um tal expediente sem terapia de apoio.

Por mais que histórias e corredores da alma humana me atraiam, e nisso esteja justamente o que me seduz na área psicológica, é quase certo que eu jamais viesse a suportar a carga emocional diária desses batalhadores do equilíbrio; provavelmente choraria abraçada aos pacientes no primeiro dia de trampo – e em todos os demais. Não posso deixar, pois, de assinalar aqui minha admiração e ternura pela tamanha e tão complexa labuta dos que conseguem, dos que ficam, dos que se sustentam e sustentam seus atendidos nessa trincheira. É deslumbrante que, assim como na medicina e na enfermagem, haja os que se entranhem tanto na procura do bem-estar alheio; porém é sempre preocupante que cheguem a fazê-lo expondo seus corpos e mentes à exaustão e ao "contágio" – daí a urgência de cuidar dos que cuidam, valorizá-los como heróis mas não exigir-lhes as habilidades dos quadrinhos, honrá-los sem lhes romantizar o sofrimento, aplaudi-los dedicados sem os querer perfeitos, gênios, mártires. Psicólogos e demais profissionais da saúde mental podem ser pontes e para-raios, mas facilitar a travessia não significa ter o poder de interromper a inundação, nem ajudar a direcionar forças implica a capacidade milagrosa de impedir o golpe.

Pelejadores armados de ciência e escuta, harmonizadores de gente, moderadores de autodiálogos, monitores de autoaceitações: mil parabéns pelo aniversário brasileiro; cuidem-se firme para seguir firmes. Sem seus ouvidos constantes e treinados, milhões não encontrariam no dentro de si a melhor versão.

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