terça-feira, 22 de setembro de 2020

Olha quem está falando


Não deixa de ser hilária a iniciativa do aplicativo de paquera Inner Circle (cês já tinham ouvido falar? eu também não), que decidiu banir as interjeições-muleta "oi", "ei" e "olá" dos contatos entre usuários, após constatar, em pesquisa, que a maior parte das interações começadas assim vai perfeitamente a lugar nenhum. Toda vez que a chegada for nesse grau de desimaginação, portanto, o app vai trocar as palavrinhas exiladas por "uma cantada engraçada, atrevida ou maluca" – isto é: ou os preguiçosos colocam mais vontade e empenho na hora de abordar alguém que pode ser o big love de sua vida, ou se arriscam a que uma inteligência artificial escolha o discurso por eles, sob pena, talvez, de acabarem enviando uma mensagem que de modo algum os representa. Meu lado introvertido e arredio acha invasivo, o raciocínio frio responde que oras, se estão em app de amorzinho é porque querem amorzinho, e a ferramenta virtual é feita para ser eficiente a despeito do próprio usuário. Meu lado tímido e arisco proclama o direito de ser lento, a lógica responde que aff!, não entrou pra dar match? Então pelo menos corra atrás, renove o diálogo, invista, rebole, se esforce. O Inner Circle é aquela turma de amigas(os) que fica em volta aquecendo a situação e botando pilha, o que pode tanto dar num tapa na cara imaginário quanto num casamento de 76 anos cercado de bisnetos e com história folclórica para contar à mesa de Natal.

Interferir diretamente no texto paquerístico de uma criatura (alguém mais pensou em Cyrano?) soa assustador em se tratando de um programa, admitamos. Indica manipulação des-ca-ra-da de uma possível relação de afeto por bytes amorais e incapazes de afeto algum – e, para quem já assistiu ao ótimo e terrível documentário O dilema das redes, a coisa se apresenta ainda mais desconfortável. Ao mesmo tempo, como a ação é escancarada em campanha com hashtag e tudo (#MaisQueOi), o usuário pode se considerar plenamente avisado das consequências de ser relapso com uma pessoa interessante e valedora de esforço. Se for digitar, não durma; digite com responsabilidade, de alma atenta; digite com a granada fictícia na mão, para lembrar a clássica cena da aula em Tropa de elite: uma cabeceada sonolenta e vai tudo pelos ares. O mínimo que se espera de um senhorito ou senhorita a fim de interação é interagir, em vez de largar um monossílabo oco, irrespondível e não solicitado como álibi de que deu o primeiro passo. Quer ficar? conhecer? namorar? noivar no topo da Torre Eiffel? casar num vinhedo da Toscana? Você que lute. 

Deixo aqui, inclusive, minhas humildes sugestões de aterrissagem. Querendo usar uma quase inevitável interjeição, recomendo o "nossa"; escapa à butuca do algoritmo e causa, de saída, a simpática impressão de que a outra parte é emocionante e positivamente espantosa: "Nossa, seus olhos são os mais bonitos que eu já vi!"; "Nossa, AMEI a frase que você usou na apresentação; é do meu autor preferido. É o seu também?". Acho de potencial fofo e versátil, sendo praticamente tão eficaz quanto um "oi" no start e bem mais do que ele no encaminhamento. Encaminhamento, aliás, é essencial desde a partida, que o abordado quer mais da vida do que ficar catando assunto pra fazer sala: já vai um cumprimento/elogio com pergunta em anexo, focando nas coisas em comum, nas favoritices, pra ver se o papo ganha logo combustível e decolagem sem queimar a largada com o entojo dos pedidos de foto. "Foto de agora", criatura? Você é um coração solitário, comprador de cabeça de gado ou CSI? Eu, hein. Não sabe brincar de conhecer gente pelo lado que interessa, nem desce com o pogobol pra rua.

De modo geral, a psicologia humana não varia tanto assim ao ser demandada por pretendentes: todos querem constatar que valeram um exercício de inteligência, um desdobrar-se no tema, uma busca de citação, uma amostra de dedicação e paciência que não deixa de ser trailer auspicioso de qualquer relacionamento. Se há sinceridade no interesse, mistério não há. É estar autenticamente ligado no que é dito, ter a delicadeza de fazer fluir a conversa sem esperar que o outro aja como saca-rolha, não ser implicante, não julgar, não cobrar informações muito íntimas, "ouvir" sem fingimento, elogiar sem falsidade – nada de que uma pessoa legal e sensata não seja capaz por intuição e mérito próprios. Ainda que não consiga unir pombinhos em felicidade eterna, a campanha do Inner Circle já terá valido de monte, caso obrigue os xavequeiros molengas a sair do "venha a nós o vosso reino" e parar de tentar competir com o silêncio digitando qualquer asneira. Pra vocês verem. Até os softwares que, em alguns anos, nos guardarão na Matrix e nos sugarão a energia vital de canudinho andam muito preocupados com nosso estado de evolução.

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