domingo, 6 de setembro de 2020

A fórmula da água

 Congelados Lágrimas Ferroviária

Há exatos 151 anos, nascia na Hungria (embora com um mês de vida se tenha tornado austríaco) o responsável indireto por milhões de litros chorados no cinema: Felix Salten, autor de Bambi, a life in the woods, que nas mãos da Disney fez a gentileza de traumatizar gerações. Eu sinceramente gostaria de prestar carinhosa homenagem ao escritor, e em intenção já a deixo registrada, porém me vejo distraída demais com um trauma ou antitrauma particular relativo à mais famosa adaptação da obra de Salten. É preocupante, sei, mas vá: nunca consegui chorar – como 97% da humanidade dizem que choram – na famigerada cena em que a mãe de Bambi é alvejada e morta. Provavelmente isso me transforma num pária social com ainda mais gritante intensidade do que o fato de não usar WhatsApp; mea culpa, mea maxima culpa. E, já que estou aqui em mood de confissão autoflagelante, vou piorar pro meu lado e acabar de pendurar a letra escarlate na minha reputação: também sou incapaz de chorar na morte do pai de Simba. AND sou incapaz de chorar no filme Sempre ao seu lado. Eu sei, eu sei, mereço estrelar um episódio de Criminal minds e um cartaz de mais procurados da Interpol.

Nos estretantos, me defendo ou explico. Se esses marcos da desidratação humana não conseguem me empurrar para além de uma leve tristeza empática, há outros que me fizeram encher mais baldes que goteira de shopping, e que aliás já citei aqui recentemente: E.T., Meu primeiro amor, Toy story 3, Divertida mente, Viva – a vida é uma festa, Marley e eu (para ninguém me acusar de insensibilidade a catioríneos) – fora aquele flagelo chamado Up, que não quer saber de esperar os momentos finais e picota a gente em pedacinhos nos dez ou quinze primeiros minutos. Bem se vê que não, não sou nenhuma serial killer desalmada, inclusive animações me comovem e comovem rude; normalmente é a Pixar que mais me destrói na sala escura, por sinal. E não sou nada de chorar difícil: choro com meme, frase de livro, capítulo da novela das sete, reportagem do RJ-TV, texto de Face, MasterChef, Os Busbys + 5 – é só fazer direitinho. Então por que a secura ocular em determinados clássicos da torneirinha? Por que continuo Saara onde me querem Pacífico?

Uma hipótese a que me agarro é a de que sou basicamente motivada às lágrimas por identificação com a complexidade humana; mesmo antropomorfizados, aparentemente os personagens não humanos (me) deixam a desejar em termos de alcance aos cantinhos d'alma. E não é que não adore animais. Realmente adoro. Mas creio PRECISAR, para o choro, da projeção nos processos que são só nossos, exclusivamente nossos: a consciência da passagem do tempo, dos fins de fase, das despedidas, da solidão após toda uma vida conjunta, do desejo de preservar memórias, da doçura de que não estão isentas algumas tristezas. Ainda que retratados quase à semelhança de nossas atitudes, ainda que dotados de fala e sentimentos, animais como os de Bambi e O rei leão têm vivências animais; espelham certas experiências do mundo sapiens, porém é muito raro que efetivamente as reproduzam. O real desamparo de crianças humanas ao perder os pais nunca será o de filhotes mais fortes e dotados por natureza. Certo, isso é racional demais, mas é também questão de timing cinematográfico, acredito: em acréscimo à limitação da possibilidade de espelhamento, há o fato de a Disney não ter investido em catarse. O luto em Bambi é breve e seco como o tiro na corça, e o pequenino, embora aflito, é logo recolhido e reencaminhado pelo pai; o luto de Simba, a despeito da morte em cena grandiosa, não tem seu tempo muito mais respeitado, uma vez que o bichinho "precisa" evaporar-se de seu reino numa decisão ligeiríssima e não demora a travar contato com o núcleo cômico da selva. Não existe (para esta insensível que vos fala, ao menos) clima algum para a construção do choro, que demanda uma costura e manipulação da angústia não necessariamente longa – tanto que um comercial pode me inundar os olhos –, mas necessariamente certeira. E o drama de Hachiko, o protagonista canino de Sempre ao seu lado? Fácil de imaginar por que não me abala tampouco: a perda não é sofrida pelo humano, mas sim pelo cão, e consequentemente não se reverte em linguagem como a conhecemos. É triste, é lancinante, no entanto passo de olhos secos; sem uma catarse bem aplicadinha à nossa espécie, não saio do lamento protocolar.

Explicações convincentes? Talvez nem tanto, mas sinceríssimas, juro. Literalmente no apagar das luzes, enfrentamos a individualidade de nossos pontos fracos, e nos deixamos seduzir até a entrega somente por uns; por outros, não. Se há uma fórmula, uma química, há de ser uma química específica de elemento para elemento, de algumas histórias para algumas histórias, de certas trilhas para certas audições, de coração ficcional para coração real – tudo demasiado íntimo para ser apreendido, e no máximo imaginável. Nem há por que me justificar por estes ou aqueles amores: cada cultivo é para cada terreno, e cada filme ou narrativa afim encontra seu ambiente ótimo sob olhos diferentes. Cada um desses olhos diferentes aprendeu, por caminhos vários, a derramar-se em determinado ponto de fusão.

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