quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Troféu Arrepio


Em posts recentes falei de filmes-cebola, aqueles que detonam sem misericórdia nossas Cataratas do Iguaçu. Porém, reescutando outro dia alguns dos trechos mais potentes de Les misérables – "Do you hear the people sing?" e o "Epílogo", que têm a mesma e poderosíssima melodia –, precisei reconhecer que há uma categoria toda específica de produções, composta pelas que fazem o corpo inteirinho se eriçar num arrepio de beleza. Certo, as canções de LesMis foram feitas para teatro e logo desabrocharam em vida própria (não à toa eu estava apenas ouvindo, não vendo, o que não me impediu de reagir com todos os pelos à composição magnífica, mil vezes escutada e sempre nova); já não dependem de sua versão na telona para arrepiar ninguém: dão conta do recado sozinhamente. Mas admitamos que, apesar dos seríssimos defeitos da adaptação da peça para o cinema lançada em 2012 – sendo um dos piores defeitos o fato de praticamente engolirmos os artistas, filmados em close eterno –, a história e a música são tão espetaculares que é impossível não terminar a sessão quase em transe, possuídos pelo sonho catártico de liberdade, igualdade, fraternidade. Fica aqui o desafio; assista ao longa protagonizado por Hugh Jackman e TENTE não ser abduzido pelo final apoteótico que canta: "Do you hear the people sing,/ Say, do you hear the distant drums?/ It is the future that they bring/ When tomorrow comes!/ Tomooooorrooow coooooomes!". Se não sentir a magnitude da cena se derramando por braços e pernas, nada posso fazer por você além de passar o número de um psiquiatra.

Outro supermerecedor do Troféu Arrepio é o doce Tomorrowland, uma daquelas obras talvez subestimadas, pouco lembrada nas listas de produções mais-mais, mas certamente dona de uma das mais-mais últimas cenas; quem ainda tem olhos de esperanças verdinhas, independentemente do tique-taque pessimista de quaisquer previsões, não consegue sair do longa sem o secreto desejo de encontrar um pin casualmente deixado em sua prateleira, pasta, estojo. Por falar em pastas e estojos, como, em um milhão de anos!, esquecer Sociedade dos poetas mortos e a enormidade de um professor percebendo que atingiu seus objetivos acadêmicos e sociais, a despeito das mentes obtusonas, dos preconceitos, das injustiças? Ainda na vibe professoresca: Mr. Holland, meu Pai do céu. Por algum motivo, não costuma ser muito citado na ampla categoria filmes-de-sala-de-aula, porém sempre o tive como obra-prima – e seu desfecho acaba comigo; na premiação imaginária conduzida por mim mesma, concedo-lhe o duo de troféus Arrepio e Cebolão. Outra sequência pela qual nenhum fã que se preze (se acompanhou com carinho toda a saga tecida pela Marvel) passou incólume foi a imensa "chegada de reforços" em Vingadores: ultimato; não é apenas algo visualmente grandioso, é o arremate de uma década, disposto a atiçar condignamente os estremecimentos de nosso sentido aranha

São infinitos os exemplos de calafrios cinematográficos, e para cada menção esqueço dez outras, mas sigamos: a cena de recordação de Nickie na França, e todo o diálogo final entre ele e Terry, em Tarde demais para esquecer (o de 1957, claro); o ajoelhamento coletivo no último filme da trilogia O Senhor dos Anéis, O retorno do rei; a realização triunfante dos planos de V em V de vingança; a sequência da morte/funeral de Edward Bloom em Big Fish; quase qualquer momento em que toca a "Rapsódia de Rachmaninoff" ou o tema principal de Em algum lugar do passado; o festival das luzes flutuantes de Enrolados; o voo da(s) bicicleta(s) em E.T.; o último movimento de um dinossauro na ilha Nublar, em Jurassic World: reino ameaçado; o "Let it go" de Elsa em Frozen; a audição de Mia em La la land; o trecho excruciante de James Braddock pedindo dinheiro para religar o aquecimento, em Cinderella Man. Isso são só os que rapidamente me ocorrem, e é BATATA que, tão logo o texto esteja arrematado e postado, outras cenas cruciais venham à cabeça e martelem de jeito ainda mais arrepiante. 

Honestamente: se não for para comprar o ingresso ou pousar no sofá com a mais inteira entrega e disposição de se deixar invadir, passear, sussurrar pela narrativa, com o cinismo em off e a luzinha piscando verde para um potencial amor eterno, adianta coisa nenhuma investir tempo e pipoca. Nem todos os filmes, óbvio, vão achar o ponto A de levantar os pelinhos do braço, perna e nuca – mas o fundamental é chegarmos com vaga; chegarmos possíveis, acessíveis, desarmados. Chegarmos ao assento e imediatamente darmos condição para que o companheiro das duas horas seguintes nos atinja: surpreenda-me, my captain.

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