segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O dia dela

 Borboleta Monarca Colorido - Foto gratuita no Pixabay

Sete de setembro é um dia incontestavelmente glorioso e heroico, um dia talhado para honras e homenagens, o dia dela – de Neerja Bhanot, claro. Nascida nesta data em 1963 e morta na antevéspera do níver de 23 anos, Neerja foi uma corajosíssima comissária de bordo indiana que se sacrificou para salvar colegas e passageiros do voo Pan Am 73, sequestrado por quatro terroristas num aeroporto do Paquistão. A comissária era chefe de cabine e conseguiu alertar a tripulação tão logo os bandidos embarcaram, o que permitiu que comandante, copiloto e engenheiro de voo fugissem por uma escotilha. E impedir que o avião saísse do solo foi apenas a primeira bravura da incrível Neerja. Após receber ordens dos sequestradores para recolher os passaportes de todos os passageiros, ela soube que os cidadãos americanos presentes na aeronave seriam rapidamente identificados, e corriam o risco de ter o mesmo fim de um conterrâneo "descoberto" e assassinado pelos terroristas bem no início do sequestro. Pois a SuperBhanot e os demais atendentes (que estavam sob o comando da jovem, por ser ela o membro mais antigo da tripulação) esconderam, embaixo de assentos e numa rampa de lixo, os passaportes dos 41 americanos embarcados. 

A comissária não terminou aí sua missão de poupar o máximo de vidas. Quando os sequestradores – já depois de 17 horas daquela operação infernal – começaram a atirar loucamente e disparar explosivos, Neerja abriu uma das portas e se pôs a guiar passageiros para que escapassem por ela; durante a ação, no entanto, foi flagrada pelos criminosos, que a seguraram pelos cabelos e a alvejaram. A moça impávida e colossa morreu, ao que consta, protegendo três crianças americanas do tiroteio. Não sei se estava entre essas, mas dizem a história e a Wikipédia que uma das crianças sobreviventes, "então com sete anos de idade, hoje é capitão de uma grande companhia aérea e afirmou que Bhanot foi sua inspiração e que ele deve todos os dias de sua vida a ela". Sinceramente não consigo imaginar uma honraria maior, por mais que Neerja tenha ganhado uma justíssima série de prêmios póstumos – sendo inclusive a primeira mulher e a pessoa mais jovem a receber o Ashoka Chakra, mais alto reconhecimento da Índia por bravura em tempo de paz. 

Impossível não ficar profundamente enternecida com a doação valente da supercomissária, com sua generosidade, prontidão, presença de espírito, disposição gratuita para proteger e salvar quem quer que fosse, sem se deter pelo fato de não serem conhecidos, amigos, amados, familiares, sequer irmãos de pátria. E por isso não vejo melhor conceito de pátria do que o demonstrado na prática por Neerja, a quem acabo de conhecer e considero desde já como irmã e conterrânea. Se existe pátria, quero ser dessa desfronteirada, mais bela e forte que qualquer, gigante pela própria natureza de se fazer escudo sem fazer pergunta, sem averiguar passaporte: porque sim, porque é o certo, porque é gente. Não quero ser de pátria que bote a mão no coração pra cantar hino, mas não bote na consciência pra taxar rico; não quero ser de pátria que tenha cores privilegiadas e exclua todas as outras (e não, nem estou falando de bandeira); não quero ser de pátria que festeje com bala de canhão e finja demência sobre bala perdida. Quero ser de pátria que vista camisa não de seleção, mas de mutirão, de ocupação, de ação, de criação, de construção. Quero ser de pátria que dê o sangue inteiro para evitar vítimas, em vez de escolhidamente entornar sangue sempre das mesmas. Quero ser de pátria que não se limite a ser mãe gentil de poucos filhos deste solo; que não cochile em berço esplêndido enquanto ignora os brados retumbantes das quebradas; que não cante os risonhos lindos campos enquanto tolera grileiros, garimpeiros e queimadas; que não trate as próprias abundâncias culturais como umas quaisquer entre outras mil. Quero ter carimbada no passaporte a cidadania ideal de Neerja: abraçante, atenta, ativa, inclusiva, zelosa, protetora, amiga do esclarecimento, da libertação, da independência enfim.

Aquela: a que faz não temer (quem a adora) a própria morte.

Nenhum comentário: