sábado, 26 de setembro de 2020

O poder


Quem viu A lista de Schindler vai lembrar-se de que, em dado momento, o personagem do título tenta manipular o vilão Amon Goeth para que sossegue os impulsos sanguinários (o que, infelizmente, só é conseguido por um período curtíssimo), afirmando-lhe que ter meios e "justificativas" para tirar uma vida AND tirá-la não representa o verdadeiro poder; o poder, segundo Schindler, é justamente NÃO fazê-lo. Trata-se de uma estratégia marota do protagonista para conduzir o ego do nazistão ao ponto desejado, mas não deixa de corresponder à verdade – com a ressalva de que nunca existe, de fato, nenhuma suficiente autoridade para se tirar vida alguma, a não ser em proteção da própria e sob circunstâncias extremas. De qualquer modo, adoro e jamais esqueci a cena do diálogo, que vai perfeitamente ao encontro da frase do escritor Miguel de Unamuno com a qual acabo de esbarrar: "Todo ato de bondade é uma demonstração de poder". Pronto, é a carteirada filosófica de que eu precisava para fazer o Schindler e sair martelando nos Goeths de plantão: larga de cafonice, migo – essa história de arma, pena de morte, muro, guerra é para os fracos, é para os losers; ser autenticamente generoso, ao contrário, é SUPER big dick energy e vai ficando mais em alta a cada estação.

Refugiados, por exemplo. Só gente muito achatada e frustrada na vida desacolhe os refugiados, certamente por temê-los: temer que "roubem" seu espaço, seu emprego, como se com o aumento da população de um país todas as demandas não aumentassem necessariamente. Queridão, queridona, é o que já disseram em mil e um memes e versões: se você é falante nativo da língua, não passou por crises humanitárias na proporção das encaradas por vários migrantes e ainda assim sabe que eles estão mais qualificados para o mercado de trabalho de seu próprio país, onde está o poder a que você se apega para alegar que eles é que estão sobrando? onde a posse do território? onde a potência? Convenhamos: só chega na bicuda e na voadora quem se sente tão enormemente ameaçado a ponto de precisar se garantir no momento de maior fragilidade do coleguinha – ou seja, agressões e exclusões são coisa de fracassados em potencial. Fazedores de bullying, racistas, homofóbicos, misóginos e semelhantes estrupícios operam na mesmíssima lógica; quanto mais bufam e se descabelam para "provar" qualquer espécie de superioridade, quanto mais se esforçam na diminuição do outro, quanto mais se esfalfam nas calúnias, quanto mais se empenham nas surras e ridicularizações, mais jogam e deixam na cara o tanto que o oponente lhes é perigoso, quiçá fatal. Quem não teme não ataca; quem não teme está no máximo preparado para uma defesa oportuna, se estritamente necessária, mas não busca confronto e muitíssimo menos se vale da covardia como único recurso da própria fraqueza. Onde existe o legítimo poder em âmbito humano, não há milícias psicológicas bem-vindas.

A força real se (re)conhece, se assume, não precisa repetir-se e gritar-se para se persuadir de si, e normalmente só tenta persuadir os outros a respeito das necessidades e valores de terceiros; por ser ela mesma uma usina de watts, reafirmar sua intensidade soa redundante e nada urgente – emergências alheias e coletivas se impõem. A Força, assim à la jedi, se posiciona frontalmente contra o bullying dentro do grupo, não embarca em manadas, tem uma faísca mental capaz de julgar para além de popularidades e mentalidades de rebanho, se coloca em qualquer reta ou treta para defender qualquer acerto, nunca achou graça em zombar de deslizes, nunca riria de deficiências, nunca fugiria de consequências, carrega a culpa sozinha para não permitir injustiças, confia sem cegar mas sem pressupor traições, abraça causas com todos os membros, se joga, se doa, perdoa, não toma como desonra o que não é de seu arbítrio. O poder pirata se acha – o poder se sabe. A Força não tem arma; sua ausência não tem alma e se compõe de arremedo e medo.

Se Goeth é a força frustrada e impostora, vamos de Goethe – a genuína e transbordante da espécie: "Seja o homem nobre, caridoso e bom. São as únicas coisas que o distinguem dos demais seres". Vigor, ímpeto, fúria, ligeireza, violência, letalidade: definitivamente em nada disso estamos sozinhos na natureza, ou com vantagem física tampouco; somos estruturalmente frágeis, e só o que nos torna diferenciados é aquilo que em tudo se diferencia da capacidade destrutiva. A bondade essencialmente inteligente, porque criadora e criativa, é o divisor de almas possível entre o herói que improvisa estratégias de voo e o concorrente que (limitado ao medíocre, rápido, fácil) prefere derrubar os voadores no chão.

Nenhum comentário: