quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Rimas raras

Foto profissional gratuita de autorretrato, balão, bexiga

Vejam esta história docemente incrível que vou tentar resumir. Em 2001, a garotinha inglesa Laura Buxton, de nove anos, comemorava as bodas de ouro de seus avós, e foi incentivada pelo avô a soltar um dos balões dourados da festa com um recadinho pendurado. Ela escreveu "Por favor, volte para Laura Buxton", acrescentou seu endereço e telefone, mandou o balão ao vento. Dois dias depois, um fazendeiro de outro condado achou o enfeite já murchinho, enrolado numa cerca – e, como sabia que a filha de seus vizinhos Peter e Eleanor Buxton se chamava Laura, "devolveu-lhe" o objeto, apesar de o endereço anotado ser bem diferente. Coisa de criança, pensou.

Essa outra Laura Buxton, de outro condado, ficou naturalmente curiosa e resolveu entrar em contato com a primeira – que, descobriu, morava a mais ou menos três horas de carro. Ambas foram se dando conta da caçambada de coincidências: suas idades diferiam por meses apenas, eram duas filhas únicas, de mesmo peso e altura, estudando na mesma série, com iguais bichinhos de estimação (uma labradora preta de três anos, um coelho e um porquinho-da-índia com manchitas da mesma cor e nos mesmos pontos do corpo). Ainda por cima, quando seus assombrados pais marcaram um encontro das famílias, as duas meninas chegaram usando calças jeans e moletons rosa. Claro que suas pequenas vidas se enlaçaram inevitavelmente, e até onde se sabe continuam BFFíssimas. 

Sou apaixonada por essas histórias redondinhamente inacreditáveis, o que não é de admirar: desde sempre gosto tanto de narrativas quanto de rimas. Uns casos assim como o das Lauras não são rimas raras do mundo? Almas menos poéticas poderão dizer que se trata de uma falha da Matrix, mas isso são calúnias, crime de leso-universo; a natureza opera espontaneamente nessa vibe literária e bem-humorada, não foi programada por máquinas sem criatividade que fogem do improvável como se foge de um erro. O que é desvio para a lógica mecânica – é perfeitamente abraçável e cabível numa harmonia superior, segura de si o bastante para se permitir caprichos, indulgências alegres. Chamem a isso coincidências, paralelismos, multiverso, buracos de minhoca, dobras no tempo, ironias do destino, novelices mexicanas, convergência de energias, sincronicidades, não importa; importa nos reconhecermos seduzidos por esses incrementos que tornam o mundo vivível, que deixam o script interessante, que fazem o planeta estimulante e pitoresco apesar dos horrores por nós inventados, apesar de nossas ideias pífias, apesar de tudo. Confessemos: não são a previsibilidade e o perfeccionismo que garantem amor algum. Ever. Enamoramo-nos não pela matemática daquele ser, pela simetria de seu rosto, pelo que há de burocrático e igual; enamoramo-nos pelo que há de curioso. Pelo perfume que bate diferente, ainda que seja aquele mil vezes e em mil situações sentido. Pelo sorriso torto. Pela covinha de um lado só. Pelo jeito de se iluminar enquanto discursa. Pelo jeito de contar com outro timing a mesma piada. Pela inocência inesperada dos olhos. Pelo misterioso que personaliza, pela novidade que reconfigura, pelo pequeno milagre que se materializa com cabeça, tronco e membros diante de nós. 

Pois então: a vida, a natureza – que também se querem amadas – tratam de enfeitar-se com seus pequenos milagres, suas rimas às vezes ricas, às vezes de fato raras ou preciosas, tendendo a esdrúxulas até. Volta e meia algum olhar de poeta seleciona e exibe um certo número dessas rimas em postagens na internet: orquídeas que lembram bebezinhos, pétalas iguaizinhas a lábios, troncos de árvore que são bailarinas perfeitas, galáxias idênticas a digitais e olhos humanos, frutas e grutas com o formato de vaginas, raízes semelhantes a veias. A natureza em tudo se revela e se evoca, a realidade não cansa de dar olé poético em nossas tentativas de prosa, o roteiro constantemente nos põe de joelhos em maravilhamento, deixando claro que poderemos arriscar e colecionar explicações, porém não teremos nunca – como no amor não se tem – total controle. Imaginem, apenas imaginem que tédio seria se tudo planejássemos como planejamos videogames. A vida felizmente, milionariamente vem e gargalha de nossas limitadas fases e nossos parcos easter eggs: watch me. 

Por mais casos de balões dourados, Lauras paralelas, amigas improváveis, coincidências fartas, loucas, deliciosas, que continuem distribuindo tapinhas fofos em nossa insignificância. Disse Mark Twain (é das frases que mais amo) que a diferença entre realidade e ficção é que a ficção precisa fazer sentido. Misturo Saint-Exupéry na massa e desconfio: a diferença entre realidade e ficção é que o sentido da realidade fica às vezes invisível a nossos olhos contaminados de óbvio – olhos que não distinguem entre elefantes devorados e um chapéu.

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