segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Querer grande

 Amor, Fantasia, Voar, Dia Dos Namorados, Reino Unido

"Há o desejo, que não tem limite, e há o que se alcança, que o tem. A felicidade consiste em fazer coincidir os dois." 

O pensamento é do escritor português Vergílio Ferreira, mas de todos por extensão, já que parece improvável encontrar quem discorde (OK, OK, encontra-se quem discorde de que a Terra é redonda ou quase isso; ainda assim, me deixem sonhar com uma sensatez global. Grata). O que é um mínimo contentamento na vida, senão um encaixe razoável entre a altura pretendida e a potência das asas, entre reinos tidos por encantados em criança e carimbos no passaporte do adulto? Não se trata – nem um pouco – de querer pequeno; trata-se de querer abrangente, sem especificação de marca, de etiqueta, de ano de fabricação ou prazo de compra. Não se trata de mutilar possibilidades nossas, trata-se de não encorajar impossibilidades doidas – entendendo-se como impossibilidades reais o fazer questão dos poderes do Thor, ou de uma casa com piscina no núcleo da Terra, ou de um visto de residência entre os na'vi em Pandora. Mesmo alguns delírios fofos são permitidos na ambiência da felicidade, desde que flexíveis, adaptáveis, reproduzíveis em massinha colorida, não necessariamente esculpíveis em carrara.

Assim: pode-se desejar um castelo medieval, mas a felicidade inteligente saberá dialogar com o gigante da improbabilidade e topará se realizar com visitas a um ou outro, com uma pegada de Távola Redonda na decoração do apê, quem sabe um dia com a construção de uma casinha de pedra que inclua segredinhos de passagem entre os cômodos. Pode-se ser fã apaixonado de um(a) artista, mas o coração apto para feliz nunca há de esperar subir ao altar com o ídolo; vai, sim, considerar-se king of the world se estiver no show, se entrar no camarim, se descolar selfie e abraço, às vezes só se assistir 8.765.996 vezes ao clipe no YouTube. Pode-se guardar uma fome maluca de viver em outras eras, perambular em velhos séculos, mas a alma comprometida com seu gozo não vai ensandecer caso a máquina do tempo não fique disponível no Mercado Livre: esperta que é, há de se meter em teatro, TV, cinema como atriz ou figurinista ou cenógrafa, há de se enfiar pesquisantemente em bibliotecas e museus, há de até achar na internet modelitos e amigos vitorianos. Pode-se arder em chamas de ser um novo Messi, mas a mente sã, se ainda mais sã do que o corpo são, não dependerá de tanto: abraçará com amor o esporte e estremecerá de contente só em arrumar jeito de viver desse amor (como profissional) ou com suficiente espaço para ele (como praticante). Pode-se querer forte, querer muito, querer balofo e sem fronteiras, contanto que se esteja sabiamente livre do contanto que, moldável nas negociações dos pré-requisitos, aberto a reinterpretações que não neguem a essência.

"Só serei feliz com uma Ferrari na garagem": ISSO é querer pequeno, porque limitante, amarrado, restrito. Querer grande e desfronteirado é sobre ser-se leal sendo-se também generoso, dando-se opções largas, montão de caminhos arejados, nenhum deles ciumento daquele que for efetivamente seguido. Fundamental é amar-se o bastante para se perdoar a estrada não trilhada; investigar-se com a calma valentia dos que se reconhecem amplos, dos que não se subordinam a um só detalhe para justificar toda a construção. Corações que desejam sem se autoperceber, e consequentemente sem transigir, não raro dançam a um metro de mergulhar na infelicidade completa, talvez mesmo em algumas formas de loucura – essa que simplesmente nasce, muita vez, da infelicidade elevada ao cúmulo.

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