sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Nunca é sempre assim

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"Que se fixe e se repita, quantas vezes for preciso, até que o mundo fique aos nossos olhos tal como realmente é: nunca nada é sempre assim." Isso disse o filósofo português José Luís Nunes Martins, atirando uma boia em formato de unicórnio para nossos alívios. Porque convenhamos: se eu acreditasse em carma, diria que o Brasil (e boa parte da crosta terrestre) está com o nome emporcalhado na Serasa espiritual há pelo menos oito milênios; em anos recentes a coisa até ameaçou desemperrar, mas alguns começaram a estranhar a saída do lamaçal e correram a mergulhar de novo, agora beeeeem atoladinhos até a última pestana, para garantir que o país não se desmetamorfoseie desta stranger thing que materializa nossos piores sonhos intranquilos. Só que a loucura é justamente essa cisma de virar latas no lixão do planeta. A loucura, a demência, o absurdo é precisamente este "de sempre"; é a teimosia neste simulacro de realidade, vendido como se fosse destino – como se tivéssemos nascido para o borralho e nada além. Não, não é assim, nada é "sempre assim" nem "assim mesmo"; o fora de lugar é a desigualdade, o desequilíbrio, a desarmonia, tudo que o sistema nos mete de baciada goela abaixo a fim de que ideias de justiça nos pareçam um despropósito.

O mundo não foi sempre assim, o Brasil não foi sempre assim, nenhum dos dois será sempre assim. Em se pensando com o mínimo de sensatez, como é que DEVE ser? Se todos desembarcam no planeta igualmente inocentes, igualmente dependentes e igualmente humanos, o verdadeiro natural é que todos sejam igualmente supridos, nutridos, atendidos, acalentados. Se cada um desses igualmente humanos nasce com sabedorias específicas, absolutamente ninguém é secundário, descartável ou substituível. Se recursos como ar e água não têm etiqueta de pertencimento, a terra também não. Se pessoas não podem ser tratadas diferentemente por variações na cor dos olhos, dos cabelos, dos lábios, com a pele é a mesma lógica. Se tem gente suando dinheiro e aparecendo no Espaços milionários, NÃO PODE existir gente sem espaço algum. Se é a mesma Terra para todo mundo tirar alimento, NÃO PODE ter ninguém passando fome. Se todas as religiões têm no amor a pedra basilar, fica-lhes vedada para sempre qualquer manifestação de ódio. Não é opinião; é fato, é a dedução, é a lógica, é a conclusão a que leva tudo quanto se diz e conhece, é o natural, é o único possível assim mesmo. Como, com um milhão de pitombas, chegamos ao ponto em que o sempre assim é perfeitamente o contrário do justo mais essencial, do raciocínio mais óbvio, da coerência mais básica? Por que gabirobas maduras achamos mais real a surrealidade e veneramos, no papel de regra, o que deveria ser uma excrescência?

Não, a Bolsa NÃO é dogma de fé, não é divindade, é no máximo um Galactus devorador de mundos – e, dado que é feita para enriquecer os mais ricos, sempre os mesmos, não só não deveríamos nos pautar por ela como desprezá-la, odiá-la e contrariá-la de todas as formas. Não, o trabalho NÃO é sacerdócio, não é meta de vida, é uma troca de tempo por sustento – e nosso maior período de respiração não deve ser aquele que o inclui, a não ser que seja uma paixão particular, mas aí só por impulso interno. Não, o país NÃO pertence mais aos não indígenas do que aos indígenas – e, se fôssemos realmente nos orientar por algum tipo de sempre assim estrutural, só poderíamos, em plena consciência, priorizar os descendentes dos habitantes originais da terra, e não os de seus espoliadores. Não, a pobreza NÃO é normal, não é intrínseca à humanidade, não é enviada por entidade alguma, não é nada senão a manifestação de nossa insanidade coletiva, de nossa incompetência como espécie para cuidar da própria espécie. Nada que beneficia só alguns, nada que é para pouquíssimos, nada que é obscenamente caro, nada que é violento, humilhante, indigno, nada que mata, nada que maltrata, nada que oprime e infelicita é normal, nem assim mesmo, nem mesmo sempre assim: tudo mero engodo com marketing aguerrido, tudo injetado em nós com discursos e rivotris para prevenir justas revoltas. Absurdos tão inaceitáveis que acabam ganhando a credibilidade louca dos absurdos, o ibope dos absurdos; pessoas foram, afinal, longamente industriadas na arte de proclamar os sofrimentos para parecer sérias. 

Somente uma coisa é aceitável como normal à única espécie capaz de aprimorar-se pelo raciocínio: aprimorar-se pelo raciocínio. Tudo que nos joga para a selva à qual não deveríamos pertencer só faz desmentir nossa vaidade de evolução.

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