domingo, 27 de setembro de 2020

Abaixo o defô


É absolutamente doce e fascinante a iniciativa da loja Bright Ears (hospedada no site Etsy), que deu um passo à frente no sentido da inclusão e vem produzindo bonecos de características diversíssimas: implantes cocleares, sondas de nutrição, cicatrizes de operação, óculos, bolsas de colostomia, lábio leporino, you name it. O melhor é que os brinquedos, porque customizáveis, podem ganhar o máximo de parecença com seu futuro donozinho ou donazinha. Se eu – sem ter filhos nem sobrinhos – estou de todo encantada com a fabulosidade da ideia, consigo vagamente imaginar a alegria das mamães e papais que encontram uma nova forma de ajudar seus pequenos a sentir-se representados, abraçados, aceitos. Certamente mais seguros; afinal, bonequinhos e quinhas costumam acompanhar seus mini-humanos em todas as situações e ambientes, e acredito seja sempre menos assustador quando há um parceiro que "passa" pelas mesmas coisas, que é um espelhamento reconfortante das mesmas questões e dificuldades. Quanto mais abertos à projeção de suas pessoinhas, menos os brinquedos se limitam a filhos/amigos e mais são promovidos a cúmplices de plástico ou pelúcia. 

Para crianças e adultos que se desenvolvem sem pertencer a grupos minoritários – ou seja: crianças e adultos brancos, magros, heterossexuais, sem problemas médicos significativos, não portadores de deficiência –, parece muitíssimo raro ou difícil não haver identificação com personagens; a "normatividade" nos circunda, sugerindo, para fins de controle institucional (é bem mais punk moldar comportamentos e necessidades de uma sociedade muito heterogênea), que existe um default. O defô é lenda urbana, sabemos; o que há é uma coleção gigante de detalhes e carências enormemente específicos sob o umbrellão humano. Em geral as crianças não o sabem, porém, e não têm elementos para compreender os disparates de pensamento que levam à lógica uniformizadora: concluem simplesmente que, se não se vê ninguém como elas nas vitrines, nos desenhos, nos desfiles, nas novelas, nas propagandas, nas equipes de heróis, é que elas estão fora; são exceções impertencentes ao sistema, destinadas a aplauso e consumo passivos sim, mas não à cadeira VIP debaixo do holofote. Para vocês, não sei; para mim, soa como a maneira mais cruel e eficiente de cortar pontas de asas e meter em gaiolas quaisquer tentativas de voo: este aqui serve para a exibição na tela, este outro não serve, deixe ali quietinho observando dos bastidores.

Louvadas sejam, pois, TODAS as ações que – como a da Bright Ears – puxam para o palco quem está à revelia nos bastidores, mostram que há papel para todo mundo, que há mundo para todos os perfis, lugar para todas as belezas, autorização de decolagem para todas as expectativas. Decantadas em prosa e verso sejam todas as ideias que trazem no mínimo um quintal para corações só familiarizados com paredes. Afamados, divulgados, famigerados sejam todos os passaportes para vidas mais completas e mobiliadas, mais arejadas e coloridas, mais amplas e janeladas. Que haja princesas comunicando-se em língua de sinais, apresentadores que não cubram de maquiagem as cicatrizes, protagonistas cadeirantes, modelos com vitiligo, heróis com prótese e uma lista imensamente desdobrável de possibilidades que amem e escancarem cada peculiaridade humana na exata medida do que é: uma peculiaridade, não um defeito. Que nossa diversidade receba total indulto e sinal verdinho para ser celebrada em todos os âmbitos, em todas as esferas – lindamente livre do arame farpado que inutilmente a trucida. 

Parou de palhaçada com essa história de padrãozinho: brincar de uni-duni-tê não vale se o excluído é sempre você.

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