quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Aquela gota


Sabem quando a Madre Teresa de Calcutá disse que seu trabalho era apenas uma gota no oceano, mas que sem aquela gota o oceano seria menor? (Claro, era THE Madre Teresa de Calcutá, que fez um mar, não uma gota; vamos, porém, nos concentrar na frase da autora, não na comparação de nossa humilde existência com a da autora mesma, já que o objetivo é garrar ânimo em vez do completo oposto.) Pois então: abraçar com dentes cerrados e prontos essa espécie de teimosia me tem parecido a única forma possível de sobreviver. O Brasil nos espanca diariamente – aliás: o Brasil é diariamente espancado junto conosco, por vilões que apavorariam os do sanatório Arkham; fogo, enchente, desmatamento, desemprego, desigualdade, impunidade, plutocracia, mentirocracia nos dão na cara e no fígado da manhã até a noite, e de madrugada aproveitamos para pesadelar com os mesmos personagens. Ou seja, vivemos porque há em nós uma gana de feras feridas defendendo os filhotes, sejam estes filhotes literais ou herdeiros figurados: alunos, amores, ideias, trabalhos, projetos. Vivemos porque, nas realidades individuais, somos as únicas águas disponíveis; independentemente se riachinhos, poços, poças, pouquinhos de chuva estancados em bromélias, se não existirmos falecem ecossistemas inteiros. Se não existirmos, todo um microcosmo de pensamento e amor passa a inexistir. Se não existirmos, muita coisa e muita gente morre de sede.

Muita coisa, muita gente, muito mundo de que sequer desconfiamos.

Fora o que protegemos conscientemente e com sanha de Juma Marruá, há tudo que irrigamos com indireta responsabilidade. Gente que achávamos estar dormindo durante a aula, mas que caladamente ouvia; e por um dia, por uma tirada, por um motivo, por um nosso qualquer movimento, decidiu seguir pelo magistério, e deu ou dará aula para alguém que parecerá estar dormindo, mas que caladamente ouve – ouve tanto que ainda terá o insight de uma cura importantíssima. Gente a quem pagamos um lanche na rua em momento particularmente ruim, e que por causa do lanche teve um bocadinho mais de fé e força naquela tarde, e que por causa do bocadinho mais de fé e força desistiu de alguma coisa errada e desesperada por uns trocados naquela noite, e que por causa da desistência escapou de uma roubada monstro e veio a conhecer, pouco depois, alguém que lhe deu uma chance de recomeço. Gente que leu o compartilhamento do compartilhamento do compartilhamento do compartilhamento de um texto que escrevemos, e que (na outra pontinha do país) se abriu um tanto mais a repensar seu voto e sua posição política. Gente que cutucamos de algum jeito com a música que compusemos, com o meme ou o filho que criamos, com a entrevista que demos, com o livro que sugerimos, com o comentário que fizemos, com a campanha que inventamos. Gente que não viremos a conhecer talvez nunca e, no entanto, é em certo âmbito fruto da nossa chuva, rebento espalhado da nossa seiva, filhote disseminado do nosso sangue, mais verde e vivo e viável só porque fomos, só porque estivemos. Mesmo que na nuvem.

Se somos gota, bora ser direito: gota renhida, gota cabulosa, gota tinhosa, turrona, que pode não ser cachoeira mas sabe direitinho para onde ruma. Muitas vidas só transbordam para o que são depois de sermos nós a gota d'água.

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